terça-feira, 20 de outubro de 2009

D.

O D. era meu primo. Tinha os olhos mais bonitos que vi até hoje. Negros, brilhantes, com reflexos do Mundo. Tinha o cabelo muito liso, escorregadio, negro também. O D. tinha uma pele muito branca e muito macia. Umas mãos sempre quentinhas e uns dedos compridos. O D. não falava, não andava, não mexia os braços ou as mãos. O D., às vezes, nem segurava bem a cabeça. Nasceu aparentemente bem. Há registos fotográficos dele com um futuro mais do que promissor à frente. Adorava aviões. Podia ter sido piloto. O D. também podia ter sido poeta. Porque tinha na alma a capacidade inata de falar sem palavras, de se declarar sem verbos. O D. amava com o olhar, com a expressão, com o sorriso. O D., não falando, deixava claro tudo o que o fazia feliz e tudo o que o aborrecia a sério. Teve momentos felizes. O D. cresceu. Mais velho do que eu, aprendeu sozinho que a adolescência lhe ditava regras mais duras de suportar. E que o amor, ali por altura dos dezassete, podia bem ser uma coisa tão séria que não suportasse a morte. Por isso, vi-lhe algum desconforto no olhar quando assisti à sua última crise respiratória. Dei-lhe a mão a tempo de entrar na ambulância. Deixei de lhe fazer festinhas nas pestanas e passei a dar-lhe a mão menos vezes. Já não lhe apanhava tantas flores e empurrava-lhe a cadeira mais devagar no caminho para o mar. Fomo-nos despedindo com calma. O D. teve a mãe coragem ao lado dele. É minha tia. E o pai mais doído do peito. É meu tio. E a família mais incrédula. É a minha. O D. podia ter tido uma vida de sonho. Mas morreu no princípio. E viveu com a alma presa num corpo que nunca lhe obedeceu. O D. era meu primo. Morreu há catorze anos. O D. é o meu anjo-da-guarda, para sempre. Porque o D. estava para ser... e foi, também comigo.

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