Um blog também serve para ir dando conta da vida aos amigos... que sabem do blog. Antes de ter o poraquipasseieu, enviava, de tempos a tempos, mails aos amigos. Mails gerais, como se os convidasse para um chá ao final da tarde e desbobinasse as novidades. Este foi dos últimos mails que enviei, ainda antes do primeiro blog. Fala da minha avó Rosa. E está na altura de ficar aqui.
"Kikas e kikos da minha vida!
Cheguei de férias...
Atraquei em poiso conhecido no fim da quinta feira passada, depois de seis dias de sonos que romperam as manhãs, sestas e pequeninas passagens pelas brasas a qualquer hora e em qualquer lado...
Desse estado Zen saí apenas por uma noite, deliciosamente raptada pelos manos... que me devolveram umas horas à agitação de... ups... de um recanto ali ao lado...
Do meu sítio, perdido na Serra de Montemuro, trouxe ar, um cheiro a rosas que ainda se soltou dos poros durante uns dias e alguma serenidade...
Depois desse tempo, outro, em que durante um fim de semana me senti em casa, pertença... Ouço as histórias da minha avó sempre com muita atenção. Às vezes são repetidas, mas tenho medo de alguma vez não ter ouvido tudo, ou não ter ouvido bem... e acho-as tão preciosas que não podem perder-se por distracções balofas.
O casamento da tia mais nova foi de rir... e de chorar....
À despedida de solteira levámos a avó... Adorou e achou tudo muito decente... Já o avô... que acompanhou os rapazes... deve ter deitado as mãos à cabeça algumas vezes.... mas sempre que lhe perguntamos 'então que tal?'... ele responde 'oh... deixem lá isso'. Tentei acalmar a avó... até lhe disse que a parte masculina da família não faria nada de escandaloso porque o avô ia estar presente... Mas a avó encerrava as minhas tentativas com um suspiro e um conformado 'Oh R***inha, então não vês que o avô adormece logo e depois eles fazem o que quiserem?!' Foi de rir...
No dia... cumpriu-se a tradição... dos 12 filhos, faltava cortejo matrimonial de um... e então lá seguiu a malta toda a pé, desde casa dos avós até à igreja. Até o avô... 88 anos de vontade lá se encarregaram de o fazer chegar... de careca escaldada e aflito dos calos... Mas chegou (tão estafado que dormiu entre os pratos do almoço... mas enfim :)!
A noiva foi afónica e na hora de dizer 'sim' só o sussurrou. O padre é amigo lá de casa e aproveitou a deixa, repetindo com alguma insistência... 'Então mas queres ou não queres?'. A desgraçada da tia lá ia sussurrando que sim cada vez com uma voz mais e mais sumida... e o novo elemento da família deixou de achar graça à brincadeira ao ponto de dizer... 'Ela quer, a sério que quer, só que não consegue dizer...' E foi de rir...
Fotos de tudo, de família completa, de irmãos, de irmãs, de sobrinhos, de sobrinhas... enfim... Em cada uma a tia madrinha da noiva dizia: 'Sorrisos, oh canalha.... sorrisos'. E canalha éramos nós... gente feita, sobrinhos mais velhos que a tia que casava, mas que até para ela são meninos e meninas.
A festa durou... e durou... e durou, com bailarico animado até às tantas.
Amadurecia já a tarde de domingo quando à volta da mesa em casa dos avós se reuniu 'só a maltinha da casa'. Ora só a maltinha da casa, nas palavras da minha avó,.... são neste momento 55 pessoas, já com o novo tio...
E por lá andou a maltinha toda, a ocupar a estrada de cada vez que em rancho decide ir à bica, a usurpar os matrecos de cada vez que aos pares nos aliamos para torneios...
A maltinha ficou depois até ao nascer do outro dia, que era também da outra semana, sentada à volta da avó, a ouvir... A ouvir que ela reza sempre por ordem de idades dos filhos, menos o segundo, que ultrapassa o primeiro, porque a Rainha Santa Isabel lhe fez um milagre e o livrou de ir à guerra... E é por isso que à noite nos encomenda... aos 55, àquela Santinha (e a mais umas 30)...
A avó, para quem não a conhece, é a matriarca em pessoa. Curvada pelos anos e pelos trabalhos, a avó não pára. A avó coze broa espalmada, com fiambre e queijo lá dentro, porque sabe que os meninos gostam... e depois pede ao avô que vá ao super buscar daquelas garrafas que já têm o chocolate misturado porque os meninos gostam (é UCAL). A avó diz que nunca bateu nos filhos porque não conseguia parar de rir quando eles se punham todos a correr, um por cada banda, com as pernitas dentro dos calções... Era um rancho que a acalmava das piores fúrias... A avó diz que a mãe dela lhe dizia que assim ela não dava educação aos filhos... Mas a avó diz às netas, a olhar-lhes para dentro da alma, que a educação não se dá com as mãos, dá-se com o coração.
A minha avó diz que não tem nenhuma filha tão parecida com ela como a neta que vos escreve agora. Mas eu acho que é só por fora. Por dentro, a minha avó é insuperável. A minha avó fala dos filhos e diz que eles estão lindos como anjos, mesmo quando sabe que eles não são anjos. A minha avó suportou com um sorriso tudo, tudo o que a vida lhe deu... E a vida já lhe deu muitas coisas más. A minha avó tem uma casa pequena e consegue que caiba lá a maltinha toda, porque a minha avó é grande. A minha avó é a maior. E eu tenho pena se um dia a minha avó se for embora, porque eu acho que ela gosta de estar cá.
A minha avó diz que ter o rancho assim todo ali aos pés é tão lindo como estar no céu, pelo menos segundo o que ela acha que é o céu.
A minha avó teve muitas profissões, que foram ser mãe e avó e bisavó e mulher do meu avô. A minha avó chegou ao topo da carreira em todas elas. E é quando eu olho para a minha avó que eu percebo o que é indispensável. E que ser feliz não é mais que isso: acreditar, com todas as forças, na doçura e na serenidade que tivermos no coração.
Li, no único livro que (re)li estas férias, e que é o título dele, que 'os amantes prendem nos braços tudo o que lhes dói'. Acho que é por isso que há momentos e pessoas que me esforço por manter juntinho, aqui pertinho, dentro do coração, mesmo que me doa. Só porque os amo! E já não é pouco!
Vou trabalhar. Boas férias!
R*"
Cheguei de férias...
Atraquei em poiso conhecido no fim da quinta feira passada, depois de seis dias de sonos que romperam as manhãs, sestas e pequeninas passagens pelas brasas a qualquer hora e em qualquer lado...
Desse estado Zen saí apenas por uma noite, deliciosamente raptada pelos manos... que me devolveram umas horas à agitação de... ups... de um recanto ali ao lado...
Do meu sítio, perdido na Serra de Montemuro, trouxe ar, um cheiro a rosas que ainda se soltou dos poros durante uns dias e alguma serenidade...
Depois desse tempo, outro, em que durante um fim de semana me senti em casa, pertença... Ouço as histórias da minha avó sempre com muita atenção. Às vezes são repetidas, mas tenho medo de alguma vez não ter ouvido tudo, ou não ter ouvido bem... e acho-as tão preciosas que não podem perder-se por distracções balofas.
O casamento da tia mais nova foi de rir... e de chorar....
À despedida de solteira levámos a avó... Adorou e achou tudo muito decente... Já o avô... que acompanhou os rapazes... deve ter deitado as mãos à cabeça algumas vezes.... mas sempre que lhe perguntamos 'então que tal?'... ele responde 'oh... deixem lá isso'. Tentei acalmar a avó... até lhe disse que a parte masculina da família não faria nada de escandaloso porque o avô ia estar presente... Mas a avó encerrava as minhas tentativas com um suspiro e um conformado 'Oh R***inha, então não vês que o avô adormece logo e depois eles fazem o que quiserem?!' Foi de rir...
No dia... cumpriu-se a tradição... dos 12 filhos, faltava cortejo matrimonial de um... e então lá seguiu a malta toda a pé, desde casa dos avós até à igreja. Até o avô... 88 anos de vontade lá se encarregaram de o fazer chegar... de careca escaldada e aflito dos calos... Mas chegou (tão estafado que dormiu entre os pratos do almoço... mas enfim :)!
A noiva foi afónica e na hora de dizer 'sim' só o sussurrou. O padre é amigo lá de casa e aproveitou a deixa, repetindo com alguma insistência... 'Então mas queres ou não queres?'. A desgraçada da tia lá ia sussurrando que sim cada vez com uma voz mais e mais sumida... e o novo elemento da família deixou de achar graça à brincadeira ao ponto de dizer... 'Ela quer, a sério que quer, só que não consegue dizer...' E foi de rir...
Fotos de tudo, de família completa, de irmãos, de irmãs, de sobrinhos, de sobrinhas... enfim... Em cada uma a tia madrinha da noiva dizia: 'Sorrisos, oh canalha.... sorrisos'. E canalha éramos nós... gente feita, sobrinhos mais velhos que a tia que casava, mas que até para ela são meninos e meninas.
A festa durou... e durou... e durou, com bailarico animado até às tantas.
Amadurecia já a tarde de domingo quando à volta da mesa em casa dos avós se reuniu 'só a maltinha da casa'. Ora só a maltinha da casa, nas palavras da minha avó,.... são neste momento 55 pessoas, já com o novo tio...
E por lá andou a maltinha toda, a ocupar a estrada de cada vez que em rancho decide ir à bica, a usurpar os matrecos de cada vez que aos pares nos aliamos para torneios...
A maltinha ficou depois até ao nascer do outro dia, que era também da outra semana, sentada à volta da avó, a ouvir... A ouvir que ela reza sempre por ordem de idades dos filhos, menos o segundo, que ultrapassa o primeiro, porque a Rainha Santa Isabel lhe fez um milagre e o livrou de ir à guerra... E é por isso que à noite nos encomenda... aos 55, àquela Santinha (e a mais umas 30)...
A avó, para quem não a conhece, é a matriarca em pessoa. Curvada pelos anos e pelos trabalhos, a avó não pára. A avó coze broa espalmada, com fiambre e queijo lá dentro, porque sabe que os meninos gostam... e depois pede ao avô que vá ao super buscar daquelas garrafas que já têm o chocolate misturado porque os meninos gostam (é UCAL). A avó diz que nunca bateu nos filhos porque não conseguia parar de rir quando eles se punham todos a correr, um por cada banda, com as pernitas dentro dos calções... Era um rancho que a acalmava das piores fúrias... A avó diz que a mãe dela lhe dizia que assim ela não dava educação aos filhos... Mas a avó diz às netas, a olhar-lhes para dentro da alma, que a educação não se dá com as mãos, dá-se com o coração.
A minha avó diz que não tem nenhuma filha tão parecida com ela como a neta que vos escreve agora. Mas eu acho que é só por fora. Por dentro, a minha avó é insuperável. A minha avó fala dos filhos e diz que eles estão lindos como anjos, mesmo quando sabe que eles não são anjos. A minha avó suportou com um sorriso tudo, tudo o que a vida lhe deu... E a vida já lhe deu muitas coisas más. A minha avó tem uma casa pequena e consegue que caiba lá a maltinha toda, porque a minha avó é grande. A minha avó é a maior. E eu tenho pena se um dia a minha avó se for embora, porque eu acho que ela gosta de estar cá.
A minha avó diz que ter o rancho assim todo ali aos pés é tão lindo como estar no céu, pelo menos segundo o que ela acha que é o céu.
A minha avó teve muitas profissões, que foram ser mãe e avó e bisavó e mulher do meu avô. A minha avó chegou ao topo da carreira em todas elas. E é quando eu olho para a minha avó que eu percebo o que é indispensável. E que ser feliz não é mais que isso: acreditar, com todas as forças, na doçura e na serenidade que tivermos no coração.
Li, no único livro que (re)li estas férias, e que é o título dele, que 'os amantes prendem nos braços tudo o que lhes dói'. Acho que é por isso que há momentos e pessoas que me esforço por manter juntinho, aqui pertinho, dentro do coração, mesmo que me doa. Só porque os amo! E já não é pouco!
Vou trabalhar. Boas férias!
R*"
(13 de Agosto de 2008)
Ai ai que agora o coração ficou apertadinho e a lagriminha (para não variar) ficou à espreita!
ResponderEliminarSei que não é preciso dizer, mas se fosse eu aproveita avó ao máximo! Acho que me sentava ao dela de caderninho na mão e não deixava escapar nada!
Sei que sabes, mas tens sorte miúda!
beijinho
É como eu... Tenho passado (quando não andamos aos berros :D) bastante tempo com a minha avó, a ouvir histórias de quando namorava. E amanhã vou-me deliciar a ler cartas de amor de outro século!
ResponderEliminarEstás a gozar?! Ela deixa-te fazer uma pesquisa dessas?! Bem... desde que vi os meus avós, que fazem 60 anos de casados em Janeiro, literalmente num amasso só... acho que já nada me surpreende :) Boa leitura!
ResponderEliminarIsso é que são avós, R.!
ResponderEliminarSim, deixa... É para uma boa causa! :)
Como correu a recolha bibliográfica?! E a causa, além de boa é secreta?!
ResponderEliminarAinda não decorreu, que a minha avó não estava com paciência...
ResponderEliminarA causa é mais ou menos secreta, mas penso que posso abrir um excepção para ti... :)
Fico à espera :)
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