quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A estabilidade

Já uma vez aqui disse que o discurso do privilégio da minha geração é uma coisa que me faz ficar com os olhos raiados de sangue, não só pela fúria, mas pela incompreensão. Concedo, e sempre concedi, que a minha geração (pelo menos em termos gerais, que haverá sempre excepções), estudou mais que as anteriores, viajou mais longe e mais cedo, comeu melhor, dormiu mais confortavelmente, fez mais massagens, conheceu a internet, os andróides, os festivais, as festas, os cursos de línguas e as múltiplas actividades extracurriculares, os carros em vez das bicicletas, a massificação da moda, do design, do bonito e do bom, no fundo. Concedo, e sempre concedi, que os nossos pais fizeram tudo para que a nossa vida fosse feita aterragem em algodão doce e que à custa disso não foi tomado por encalhado e perdido para o mundo o que decidiu permanecer solteiro e viver em cada dia uma aventura. Mas o discurso do privilégio faz-me ficar com os olhos raiados de sangue porque continuo a não ver muita gente consciente do preço esmagador que pagamos por isso. Tivemos uma infância feliz e uma adolescência farta (a maioria, que haverá sempre excepções... não vá o meu texto ferir susceptibilidades), mas vivemos uma realidade, na fase adulta, que poucas ou nenhumas outras gerações, pelo menos das que se enchem de razão para nos apontar o dedo, viveram: a precariedade. Ninguém, excepção feita a algum boy das jotas, tem assegurada estabilidade laboral hoje em dia. E daí derivam as mais diversas instabilidades, que isto é tudo muito lindo mas o trabalho dignifica o homem, ora porra. Vivemos a recibo verde ou com contratos anuais, com a constante ameaça de a vida se nos revoltar toda do avesso na semana ou no mês seguinte. Um dia estamos a ganhar x e no dia a seguir estamos a ganhar quatro vezes menos. Um ano criamos laços no Algarve e no ano seguinte arranjamos emprego em Mogadouro. Mantemos um quarto em casa dos pais porque a grande maioria não consegue, verdadeiramente, arriscar transferir-se todo para outro lugar qualquer, constantemente refém da eventualidade de ter de voltar, de haver um mês em que terá de pedir ajuda. A precariedade, o rebuliço, a agitação das águas em que mergulhamos quando nos dizem "Agora és grande... Mostra o que vales e arranja-te!" deram à estampa as doenças modernas: a ansiedade crónica, o stress constante, a solidão imensa em que vivem tantos. Temos na alma inscrita a natureza dos sempre em festa e no quotidiano o grilhão do ser-cinzento. Vivemos em efectiva contradição interior, divididos entre o que valemos e o que nos reconhecem, entre o que queremos e o que alcançamos. E volto (tem de ser) à minha velhinha ideia que estamos a criar um mundo sem lugar para nós e ao meu batido exemplo das portagens, onde se substituíram as pessoas por aquelas máquinas irritantes. O desemprego também é fruto disto. A depressão nacional não está imune à deriva dos seus cidadãos. Andamos todos de um lado para o outro à procura do sítio onde, enquanto peças da engrenagem, nos possamos encaixar e serenar e... não o encontramos, recambiados a toda a hora para qualquer outro lado. 

2 comentários:

  1. Concordo inteiramente contigo. Sem estabilidade, sem sonhos, sem perspectivas de futuro. A incerteza é a única coisa que tenho certa. Todos os dias procuro trabalho, entretanto vou fazendo o que aparece, faço umas peças de artesanato e vou tentando vender, pois um trabalho minimamente certo e estável mostra-se um sonho quase inalcançável.

    ResponderEliminar