quinta-feira, 8 de setembro de 2011

M-o-r-r-e-u

Passava das seis da tarde quando o meu computador mooooorreu! Assim. Morreu. Finou-se. Respirei fundo umas 20 vezes e acreditei que tudo não passasse de mais um episódio do maniento, que desde há meses precisa, de tempos a tempos, que lhe desligue o transformador e volte a ligar. Nada. Morrido de morte morrida, sem qualquer intervenção da minha parte, o que afastava o espectro da morte matada. Respeito-o religiosamente e das 5673 vezes em que já quis comprar um computador novo, a verdade é que a maior parte das vezes nem foi a falta de liquidez a adiar a decisão, mas a resistência à mudança e a certezinha de que, para mim, nos computadores, como nos carros, o que conta é que funcionem. Se são novos, lindos, fininhos, topos de gama, must have da estação ou o raio, interessa-me tanto como a liga de futebol da Arábia Saudita. Semi refeita do choque inicial, ligo ao mano. O mano informa que a coisa só se resolve com uma bateria nova ou um transformador novo. Eu choro. Baixinho. O que prova mais sofrimento que o pranto. Enfio uma farpela mais decente que calças de ginástica e t-shirt com uma nódoa de papaia, pego no defunto e na carteira e vou à capital de consumo cá do burgo. Entro na Worten e os dois minutos em que espero que o menino me atenda parecem-me várias horas. Finalmente, com os olhos rasos de lágrimas, explico ao menino o que se passa. Ele informa que baterias não vende. 50% das minhas hipóteses fora de jogo. Vai buscar o transformador universal que vendem e anuncia-me o preço com algum pudor. Eu aceno que sim, convicta, lá bem no fundo, que, em caso de emergência, lamberia o chão da loja um mês inteiro para pagar o que me pusesse o bicho a trabalhar. Das nunca menos de 50 hipóteses de entradas, há uma, amarelinha na ponta, que encaixa e que, ligada à corrente, traz o petiz à vida. As lágrimas que se continham na barragem de cada pálpebra jorram pela cara abaixo enquanto digo ao menino que nunca me senti tão tentada a ser do Beira Mar. Ele diz que é preciso fazer cópias de segurança todos os dias e eu culpo-me pela negligência como quem sabe que as dietas não incluem hidratos de carbono mas aposta que um pãozinho com manteiga aqui e ali não aquenta nem arrefenta. O menino pergunta se tenho ali muitos dias de trabalho. Eu lembro-me que de vez em quando faço cópias mas nunca as organizo suficientemente bem para poder ignorar que a verdade é que... a minha vida mora neste computador. Da tese de mestrado às aulas, aos exames, às fotografias de uma vida, aos artigos, às músicas, filmes e apontamentos soltos, às receitas da Mafalda Pinto Leite, às mensagens que durante anos troquei com algumas pessoas, ao projecto de doutoramento e ao que fui escrevendo nele depois disso, aos documentos todos de trabalho da minha mãe e a tudo o que é matéria jurídica da empresa do meu pai, a minha vida mora aqui dentro. Este computador não foi o meu primeiro, mas antes dele usava o computador para muito poucas coisas que não fossem lérias. Estive aqui a pensar e o meu computador terá uma meia dúzia de anos. Não é de marca nenhuma, não é bonito, tem a bateria viciada desde quase sempre, pesa como chumbo, mas é um bom amigo. E, como aos bons amigos, é penoso imaginar deixá-lo para trás. Mas acho que preciso, muito em breve, de lhe dar o descanso merecido depois de uma longa vida de muito trabalho e farra à séria.

3 comentários:

  1. o mais sentido e belo epitáfio que li até hoje, R.
    Os meus sentimentos (pois, credo, a gente afeiçoa-se ao «bicho», não?)

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  2. caredo!!! mal o meu pc demora mais que 4 minutos a arrancar e a desaparecer aquele ecrã preto já começo a sentir me-do... mmm...e...dd....oooooo! Apesar de já estar tudo no disco externo. boa sorte babe.

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  3. Sofri esse desgosto há mais de um ano. Fiz o luto e agora já não sei como vivi tanto tempo sem o actual computador.

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