Tenho a curiosidade mórbida de saber de onde vieram, como viveram, quem amaram, o que sonharam. Não se nasce sem abrigo. Em Coimbra, não são frequentes. Conheci bem uma deles, nas lides das oficiosas enquanto estagiária. Aprendi com ela truques úteis de sobrevivência a que nunca recorri. Era mais nova que eu um ano. Tinha tido coragem suficiente para entreter meia dúzia dos seus muitos anos de vida má com um ou dois dias a sonhar. Porque não conhecer uma coisa não deve inibir-nos de a desejar profundamente, se acreditarmos que é por aí, que tem sentido. A minha I. passou por todas as fomes, as do corpo e as do espírito, prostituiu-se, drogou-se, automutilou-se e quis, mesmo a sério, acabar consigo. A minha I. acreditou uma vez no amor, ávida de paz, e foi deixada sozinha no quarto de um motel bem rasca. Disse-me que, apesar de tudo, ele lhe tinha mostrado o que era a felicidade. E eu acredito. A felicidade são momentos, segundos, sensações. E eu acredito que, numa sensação de um qualquer segundo perdido naquela noite feita de momentos, ela lhe tenha tocado - a felicidade. Mas voltemos aos sem abrigo... Nas caminhadas nocturnas pela capital temos visto tantos que dá dores de alma. À porta das melhores lojas da Avenida da Liberdade, amontoados de cartão e mantas, sombras esquálidas de homens e mulheres que já não são. Fede a urina de cão e pessoa ali à volta. Há restos de pão e massa em embrulhos consumidos pelo lixo. O murro mais duro no estômago não é o frio que passam, a fome que enganam, a sede que a chuva mata, a ressaca ou a sucessão de furos nos braços, nas pernas, nos sexos. O murro mais duro no estômago é feito de presente e futuro amordaçados pelo passado que os condenou a deixarem de Ser. Um país mede-se mais pela miséria que os seus passeios acolhe que pela altura dos seus edifícios envidraçados.
è mesmo muito triste...
ResponderEliminarPor aqui também já vês, infelizmente. Tenho andado pela Baixa à noite e, nas ruas que vão dar à Praça do Comércio, já se vêem alguns.
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