Quando andava na segunda classe, foi promovido, a nível nacional, um intercâmbio de correspondências, tipo pen friend à portuguesa. A mim, calhou-me ser a amiga/correspondente da A. Ora a A. é mais velha que eu uns quatro anos e andava na terceira. Escrevia pouco e com erros e nunca tinha assim novidades gigantes para contar. Vivia numa aldeia de nome curioso, de um concelho perdido do norte do país, ali à espreita do douro, entre os mais deslumbrantes montes e os mais reconfortantes vales. A A. nunca de lá tinha saído, nem para ir ao Porto, sede de distrito. Vivia com o pai e com a mãe. Não tinha televisão, nem telefone. A A. era pastora nas horas vagas e fazia as lides domésticas. A A. só me contava coisas que eu não sabia. Como se assava anho no forno, como se douravam batatas, como se chamavam as ovelhas, como se fugia do calor, como se entretinha o tempo, como se debulhava milho à mão. Eu contava a minha vida toda desde que tinha nascido, como é apanágio da pessoa que vos escreve! Do que visitava, do que fazia na escola, do que se via na televisão, das patifarias com o meu primo Pedro, do que era o cinema, das visitas de estudo (a que o pai nunca a deixou ir), do que era o mar. No fim da segunda classe, quase todos os meus colegas suspenderam a correspondência. Eu pedi à minha mãe que me ajudasse a escolher um postal da praia para a A. Nunca deixei de lhe enviar um postal de cada sítio novo que visitei. Ainda hoje, pelo menos, um por cada país descoberto, um da praia e o postal de natal. A A. fez a quarta classe e teve de deixar de estudar. Andava já eu no ciclo quando consegui que me enviasse uma fotografia. Retrato tirado a preceito, com traje domingueiro, na sede de concelho, em dia de consulta do pai que não se abalam vizinhos proprietários de viatura por dá cá aquela palha. Prometemos durante anos visitar-nos. Sonhámos com isso. Nunca aconteceu. Falámos pela primeira vez ao telefone devia andar eu no décimo, décimo primeiro. Ela iria estar numa festa da aldeia às tantas horas, o número do café era tal e tal e eu devia telefonar e pedir para falar com o pai, o senhor X, explicar que era a rapariga que escrevia cartas à A. desde há muito tempo e pedir permissão para que ela atendesse o telefone. Assim fiz. Falámos. Pouco tempo. Nenhum dos meus colegas de escola manteve contacto com o seu correspondente da segunda classe. As pessoas da minha geração, ou não se lembram sequer que isto existiu, ou não tiveram a sorte de ter uma professora que apostasse numa coisa assim. Nunca ponderei deixar de escrever à A. Sabia que éramos amigas mesmo sem nunca nos termos visto. Contava-me tudo da sua vida. Sabia quase tudo da minha. Nunca negou que as nossas cartas eram a única maneira que encontrava de manter esperta a arte da escrita. Dava erros. Muitos. Ainda dá. Nas cartas de resposta sempre fiz por usar as palavras que escrevia mal e nunca mais repetiu um erro. Nunca falámos disso. Não vale a pena. A A. é uma das minhas pessoas. Genuína, verdadeira, pedra por esculpir. Doce, serena, transparente. A A. foi feliz com cada conquista minha, profissional ou pessoal. A A. foi convidada vezes sem conta para passar férias comigo. Chegaram a estar comprados bilhetes de comboio. Nunca lhe permitiram levar o sonho por diante. A A. quis muito vir à minha festa de formatura, mas não conseguiu. Ainda não foi há muitos anos que a A. viu o mar. A A. apaixonou-se pelo filho dos patrões da casa onde foi ser criada de servir. E ele... ele serviu-se disso. A A. teve casamento marcado uma vez e teve de escrever que afinal já não casava. Até que um dia a A. me jurou que nunca mais queria ninguém na vida. Depois, mudou de ideias. Corria o ano de 2007 quando recebi um convite de casamento. A A. casaria em Julho. Era minha amiga há 19 anos e eu nunca a tinha visto. Só a conhecia por fotografia. Ouvia-a uma vez por ano desde que tinha telefone em casa e escrevia-lhe sempre que podia, mas, pelo menos, o postal dos novos sítios descobertos, o da praia e o de natal. Foram algumas as amigas que me acompanharam e me fizeram chegar a tempo de ver sair a A. da igreja, vestida de noiva. A A. só me disse "Tu vieste!" e eu só respondi "Eu prometi que viria!". Este é o retrato do momento posterior a esta frase!!! A A. teve uma festa bonita, vestiu um vestido como sonhara, chorou, dançou e sorriu muito. A A. teve direito a lua de mel. Por aí, pelo país fora. Desde 2006, a A. já começou a construir uma casa e foi viver para lá só com o marido, já tiveram um filho, já tem telemóvel, já manda sms e mms. A A. já tem um rebanho só dela e mais coelhos e galinhas. Mas há coisas que não mudam. A A. está na minha lista de postais de natal. Porque a A. é uma das minhas pessoas.
Uma história daquelas que enche o coração ... Obrigada pela partilha.
ResponderEliminarBjinhs
RC.
olha acho que foi das coisas mais bonitas que já li por estes lados da blogoesfera. E fez-me lembra que eu também tive esses pen-friends , mas os meus derivavam da disciplina de inglês, então tive um de macau e uma da Alemanha. Da Alemanha escrevemo-nos imensas vezes. mas desde que entrei para a faculdade..bem isso perdeu-se. Agora estou com vontade de ir ver a morada dela e escrever. :) obrigado, beijinho
ResponderEliminarFantástico!! Adorei, que história maravilhosa!!
ResponderEliminarDaniela,
ResponderEliminarescreve! Vais ver que vale muito a pena...
Um beijinho :)
Kelle,
obrigada!
Um beijinho*
Que amizade! Que história inspiradora! ;)
ResponderEliminarAté fiquei emocionada... Parabéns às duas!
ResponderEliminarCátia e Crente,
ResponderEliminarbeijinhos*
Muito bom R. Comovi-me.
ResponderEliminarE tenho saudades tuas :(
Continuo à tua espera na Capital.
Beijinho*
Já fui umas vezes, mas sempre com o tempo contado ou já com o programa extra reuniões tão definido que não deu mesmo. Este mês estou aí de 24 a 26. Ver se dá nem que seja para um chazinho :)
ResponderEliminarBeijo e saudades me too :)