Ontem estive num jantar com mais umas quantas pessoas de Direito. A conversa descambou para as aulas de medicina legal. Venceu a minha experiência.
Assim, cá vai!
Para que possa ser-se um brilhante licenciado em Direito (ou um licenciado em Direito, pronto, mesmo que não se chegue a brilhante), é necessário fazer uma cadeira que decorre na Faculdade de Medicina. A Faculdade de Medicina é um sítio bom de frequentar, principalmente se considerarmos que por lá andam gajos que podem chegar a pediatras e se pensa em ter três filhos (ou dentistas e se gasta uma fortuna nessa especialidade)... Pois bem... a Faculdade de Medicina até tem atractivos, que tem. Que uma pessoa excepciona aquela coisa de não os suportar se eles nos pedirem em casamento... Mas é só nisso que a Faculdade de Medicina cativa. E nós não vamos lá para isso quando temos aulas de medicina legal. Das primeiras informações que nos dão, há uma que marca toda a relação futura com a matéria: a maior parte dos suicídios em Coimbra acontece por estudantes de Direito! Ora bem, somos muitos, é certo. Mais que as mães, que há lá irmãos. Temos de estudar coisas tão úteis como a servidão de estilicídio, o venire contra factum proprio, o repúdio, o reenvio e até os delicta in se. Tudo certo... Mas daí a andarmos a atar cordas ao pescoço como se não houvesse amanhã ou a fazer pulseiras de cortes de pulso, vai uma distância. Mas não... uma pessoa chega lá e grama logo com o preconceito. Cambada de taradões de Direito... Depois, o horário das aulas é perfeito: depois de almoço. Uma pessoa passa uma hora a tentar serenar nas Cantinas do Hospital Velho e depois vai ver fotografias de queimados e atropelados por comboios e afogados de meses. A sério... metam isso a rodar quando não tivermos nada no estômago. Muito bem... A acrescentar a isto, eu tinha um pequeno acidente todas as vezes que ia ter medicina legal: ou escorregava e lá ia eu ao chão, ou torcia um pé, ou me trilhava numa porta, ou mordia a língua, ou... Escusado será dizer que AMEI a experiência :( Acontece, meus amores, que não vale a pena ficarem com peninha de mim já nesta fase do relato. Até aqui, diga-se, tudo certinho! A questão, kikissimi da minha vida, é que a malta não pode ficar-se pela teoria. Ninguém se licencia sem assistir a duas autópsias!!! Chegámos ao cerne da experiência. O meu grupo de amigos, solidários que só eles, comprometeu-se comigo que só iríamos quando eu me sentisse preparada (pelos vistos, eles estavam preparados). Marcámos umas vinte vezes o dia D. No dia, eu aparecia com ar de susto, branca como a cal da parede, toda eu tremelique, toda eu "ai minha Nossa Senhora". Com peninha e paninhos quentes, lá fomos adiando aquilo. Um dia, ligam-me, estava eu para sair de casa, logo pela manhãzinha. "Linda, hoje vamos ver as duas autópsias. E não tens de ficar nervosa. Conseguimos uma sem nenhum dos entraves que pões sempre. São dois velhinhos, ele com 89 e ela com 87. Deitaram-se vivos e "acordaram mortos". Foram encontrados por um filho. Estavam de mãos dadas. Foram felizes. Morreram sem sofrimento. Lado a lado, como sempre." Consegui soltar um "Ai tão kiko..." e achei que não teria oportunidade melhor. Gente com a vida vivida. Amantes unidos até na hora de ir embora. Romântico, lindo, até! Se chorasse seria de emoção e não de medo! E fui. ENGANADA! Cheguei ao destino convicta da sorte de arrumar com as duas de uma vez e com uma história tão lindinha. Entro no anfiteatro e... uma pessoa afogada no Mondego há 15 dias e uma criança de 4 anos vítima de acidente de viação! Acabou a piada. Não, não teve piada. Não podia ter piada. A leveza com que me ofereceram um pão com fiambre no meio das duas para eu recuperar forças levou a que insultasse de insensível para baixo um amigo para a vida! Quando o tormento acabou, lembro-me bem, tinham uma recompensa para mim (qual pessoa que se porta bem): um bilhete para "A conversa da treta", no TAGV, nessa noite! Fui para casa. Faltei às aulas da tarde. Tomei 3 banhos. Vesti-me e fui ao teatro. Passei, com boa nota. Antes isso!
É uma questão de método e abordagem: se forem ambos científicos não custa tanto! Mas com cadáveres fresquinhos é sempre mais complicado!...
ResponderEliminarbeijinho