A e B casaram em novos. Vizinhos de povoação, cresceram nos amores sem desviar muito os olhares. A normalidade impôs-lhes que na curva das duas décadas subissem ao altar com uma boda a preceito. Não viajaram, não leram, não sonharam muito longe. Foram vivendo um dia de cada vez e trazendo à sua vida tudo o que se espera das vidas sem montanhas russas. Tiveram um filho. A A encarregou-se sempre de tudo, desde o jantar, à muda da cama, às vacinas do petiz. Do B sempre se exigiu apenas que trabalhasse, que pusesse dinheiro em casa, que não desatasse à pancada em ninguém da família ainda que a vida lhe corresse pior. Cada um cumpriu bem o seu papel. Deixaram de namorar no dia em que casaram. Estancaram a volúpia daquela primeira idade e renderam-se a mais do mesmo todos os dias, uns a seguir aos outros. Continuaram a não viajar, a não ler, a não sonhar. Pior, deixaram de se falar mais que as coisas que nunca chegam a pedir um "amo-te" ou "gosto de ti". Um dia, a A diz que quer ter outro filho. O B diz-lhe que não tem idade e paciência para putos a berrar toda a noite e mudas de fraldas borradas. Ao silêncio de alguns anos, numa espécie de má memória de uma tentativa de falar de coisas sérias, seguiu-se outra decisão. Adoptavam uma criança que já fosse mais crescida, mais autónoma. Um filho novo, mas pré-feito. Se o B se entusiasmou? Disse que o que a A decidisse estava bem, como se uma resposta destas não fosse pior que um "vai dar uma curva". Basicamente, como até aí, ela que decidisse. Se corresse bem, ainda bem que ele tinha aderido. Se corresse mal, uma mão na cabeça muito próxima do "eu avisei" que nem em pequenos gostamos de ouvir. Num casal que nunca fora mais que um e um, sempre, até quando saberia a vitória serem um só, a resposta dada uma vez vale para que não se arrelie o silêncio com mais perguntas. Como se isto de ter filhos fosse uma coisa que se pudesse conceber por aderência, sem um mergulho de sentir inteiro desde a primeira hora, o C. chegou àquela casa. Conheceu a A e o B num dia de nevoeiro. Chamou-lhes mãe e pai assim que os viu e mudou de vida um dia depois. Mudou de casa, mudou de terra, mudou de ser. E foi feliz. E mergulhou de sentir inteiro desde o primeiro dia... ao último. Ao fim de um mês, um mês, A verbaliza que sozinha não tem braços que abracem esse desafio chamado C. E o B, o B diz-lhe "O que tu decidires, por mim está bem!". Dois dias depois, C entra pela segunda vez na vida num avião. Está contente, embora preferisse que o pai e o mano também fossem com eles na viagem. É devolvido no aeroporto.
Dois anos depois, o C conta que uma vez teve uma família, mas a mãe era um bocadinho pequena e não devia poder tomar conta de dois filhos e então ficou com o filho que chegou primeiro.
Dois anos depois, quando lhes disseram se aceitariam participar num determinado estudo, o B disse à A que o que ela decidisse, por ele estava bem...
O B deixou a A no sítio do nosso encontro e foi marcar a revisão do carro. E nunca apareceu durante aquele dia. A A não consegue identificar-me datas, nem nomes, nem nada. Diz duas palavras e enxuga três lágrimas. Deixei de poder contar as vezes em que me disse "lembro-me tanto dele". E, desta vez, não me apeteceu bater em ninguém que estava à minha frente. Nela, não! Porque ainda hoje acredita que decidiu mal. Só ela. Meu Deus, queria tanto fazer tudo bem e fez tudo mal. Se pudesse voltar atrás... Sabe, é como quando é pegar ou largar e larga e depois dava tudo para nunca ter largado. E tudo culpa minha, tudo. Porque por ele estava tudo bem. Sou má.
A solidão, minha senhora, come a força e a determinação, suga a vontade. Desistiu com medo. E o medo é o namorado da solidão.
Finalmente, olhou para mim e, como nunca, pude ver como é a face da tristeza mais profunda, da dor mais corrosiva, da culpa mais inultrapassável, da mágoa mais indescritível.
Se a desculpamos? Limitamo-nos a não lhe recordar, também nós, que não tem desculpa.
P.S. Não vos conto onde está o C, mas posso dizer-vos que, desde que soube, não sei se tenho mais vontade de espancar o B ou um determinado juiz. Mas acho que, não podendo aviar os dois, me dedicava a maltratar mesmo o juiz!
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