segunda-feira, 9 de março de 2009

Avós de baixo

Os meus avós de baixo não eram meus avós. Eram dois velhotes, muito mais velhotes que os meus verdadeiros avós, que viviam abaixo da casa dos avós em casa dos quais vivi até aos 9 anos. Eu nunca andei no Jardim (o que justifica as sérias dificuldades em concretizar o i). Fiquei sempre em casa, criada primeiro pela mãe, que interrompeu os estudos, e depois por muitos avós e tis. Tinha a Mã, que vivia em frente da casa dos meus avós e me dava iogurtes enquanto me explicava que o senhor que apresentava as notícias era muito bom homem... até cumprimentava sempre as pessoas à entrada e à saída do telejornal!!! Tinha o Neco, que andava sempre muito sujo mas gostava de me dar boleias de bicicleta. O Neco limpava o nariz às mangas, mas parava na fonte se fosse preciso limpar-me o nariz a mim. Tinha a Cecília, que me prendia o cabelo de lado com camélias e me chamava guapa. Tinha muitos Tis... tinha o Ti Nuno, que era dono do Moinho e fazia visitas guiadas aos catraios, o Ti Ribeiro, que vendia ouro e me dava aneis de prata... E tinha os meus avós de baixo. Os meus avós de baixo foram mais meus avós que qualquer dos meus avós. Não por mais nada se não por não terem nada mais em que se empenhar se não em serem meus avós. Os meus avós de baixo tinham uma casa em que o chão chiava e um quarto em que cheirava a perfume de maçãs, porque havia encostadinha à janela uma macieira sempre carregada. Os meus avós de baixo tinham uma casa da eira, de dois andares... um luxo. O andar de cima transformou-se em casa de brincar quando assumiram ser meus avós de baixo. Tinha móveis pequeninos, que o meu avô me fez... mais perfeitos que os de qualquer casa de Barbie. Os meus avós de baixo não escolheram ser meus avós. Eu escolhi-os e devo ter insistido até não me resistirem. Talvez tenha sido aí que me convenci valer a pena vencer os que resistem. Porque a eles também teria sido mais fácil levar a vida sem sobressaltos. Mas eu gostava tanto deles que seria uma pena não lhes ter mostrado. Acho sempre uma pena não podermos mostrar o que gostamos. Porque, às vezes, é só disso que o outro precisa, mas nem sabe! Pequenina, a minha mãe diz que ia lá mostrar cada vez que tinha uma roupa nova (vaidosa!!!) e quando lá chegava dizia que só me faltavam uns brincos a condizer. Então a minha avó tirava-me as minhas pequeninas argolas e pendurava nelas, uma de cada lado, flores brincos de princesa. E eu ia pela rua, já com a mania de abanar as pendurezas das orelhas. Eu devo ter insistido mesmo muito com eles para me guardarem no coração. Porque de vez em quando ia lá e perguntava se me podiam fazer arroz, porque eu não podia contar a ninguém, para ninguém ficar triste, mas o arroz da minha avó de baixo era o melhor arroz do Mundo (ainda hoje me lembro do cheiro. Infelizmente, há muitos anos que deixei de lhe poder sentir o sabor). Eu devo ter sido mesmo impaciente até me terem transformado em mais um motivo para sorrirem. Porque eu roubei uma caneca de casa e levei-a para lá para lhes dizer que queria um espaço para mim naquela casa. E pus a minha caneca entre as canecas dos meus avós de baixo. Os meus avós de baixo foram, até hoje, das melhores pessoas que conheci na vida. Quando deixaram de me resistir, passaram a organizar a sua vida por mim. Dormiam a sesta à mesma hora que eu e, dia sim, dia não, comiam arroz ao almoço. A pouco e pouco, os meus avós e os meus pais foram assumindo que os meus avós de baixo seriam o meu jardim de infância. Não me ensinaram a fazer i. Mas ensinaram-me a cantiga de quando cai um dente, a aproveitar o que cai em chão limpo, com um sopro e um beijinho, e ensinaram-me a ser pessoa. Um dia, cheguei a casa deles e o meu avô disse que tinha um presente para mim. Estava embrulhado em jornal. E era um banco pequenino. Exactamente como os que ele tinha feito para ele e para a minha avó, mas em pequeno. Em casa dos meus avós de baixo, plantei coisas e subi a árvores. Podei as hortenses e fui buscar água à bomba. Em casa dos meus avós de baixo, aprendi que não se deve tirar os espinhos às rosas, porque são mais ou menos como as borbulhas das pessoas: temos de gostar delas mesmo assim. Em casa dos meus avós de baixo aprendi orações e anedotas. Em casa dos meus avós de baixo havia chás de velhotes, em que se comiam caixas de sortido. No verão, comíamos camarinhas (nunca mais comi camarinhas!). Eu era uma menina da aldeia, mas com muitas coisas de menina da cidade. Todas as semanas ia à cidade. Desde muito novinha que ia ao cinema. E vesti Benetton provavelmente desde o berço, porque com duas tranças e aquelas cores todas eu ficava, no dizer dos meus pais, uma fofa! Então, tinha barbies e nenucos, barriguitas e legos. Mas para casa dos meus avós de baixo eu raramente levava essas coisas. Contentava-me a brincar com o tempo deles. E foi aí que aprendi a pôr feijões a dormir. E foi aí que descobri das melhores ternuras de psicologia infantil... porque no inverno o meu avô ia buscar um lenço da mão e cobria os feijões. Porque é preciso agasalhar os bebés quando está frio... dar-lhe beijos se ficam doentes. E não os deixar sozinhos porque podem acordar e desatar a chorar. E as pessoas crescidas devem fazer tudo para os pequeninos não chorarem. Só se fôr de alegria é que não.
Um dia, o meu avô foi parar ao hospital. E morreu. Não quero falar mais disso.
Continuei com a minha avó e fiz-lhe festas tardes inteiras. Comecei a saber pôr a mesa e ia mais cedo só para me enroscar nas pernas dela enquanto nos fazia arroz. Arrumámos o banco do avô no quarto com perfume a maçã e continuámos a fazer chás e cevadas com os outros velhotes. E eu continuei a ser a sua princesa. Tornei-me sobrinha das filhas dela e das netas e bisnetas dela. Recebia serenatas de amor porque elas estavam no Brasil. E quando vinham, fazíamos excursões em multidão. Mas depois elas iam e eu ficava a fazer festas à minha avó. E, quando soube ler, li-lhe a oração do anjo da guarda e ela chorou. E quando ela ficou doente e tiveram de a levar para o Brasil, também chorou. E eu, tanto. E um dia, quando ficou tão doente que parecia que talvez fosse morrer, telefonou-me. E quando melhorou fez cá uma viagem. E sentada cada uma no seu velho banco, fez as partilhas que o coração mandou. E deu-me o banco. E as três canecas. E o tacho do arroz. E o crucifixo da sala. E um lenço de mão. Morreu no dia do meu último cortejo de Queima. Ela, a quem absolvi mil vezes do esturro de qualquer coisa e condenei a pentear-me tardes inteiras. E puseram a casa à venda. E os meus pais compraram. E um dia, quem sabe, não faço dela outra vez a minha casa. Agora cede ao tempo. Mas seriam borbulhas da alma ver alguém arrasá-la um dia.

4 comentários:

  1. Ninguém sabe passar o coração para as palavras como tu.

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  2. Raquel,
    vou tomar isto como um elogio. Talvez dos melhores e mais apetecidos que alguma vez sonhei receber. Hoje, com isto, fizeste o meu dia, a minha semana, os meus últimos tempos. Gostava, sinceramente, de, uma vez por outra, conseguir passar, como dizes, o coração para as palavras. Acho que raramente o faço como deve ser. Mas ter conseguido essa proeza no texto sobre estas duas pessoas compensa qualquer falta de mestria nos outros textos de muitas palavras em que, limitada, julgo ainda ter pouco coração.
    Muito, muito, muito obrigada!
    Beijinhos*

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  3. Este texto é soberbo... estas letras de verificação são um terror, desculpa. Não comento mais porque não aguento estas terriveis letras ;)

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