Já fui à minha editora. Mesmo à sede. Cheirar o som das máquinas.
A minha P. tem um código penal de 1852 que me serviu de inspiração para umas quantas páginas do livrinho. É um código emocionalmente a meias com a minha P., esse código. Durante o tempo de execução da linda obra, o código da minha P. morou em minha casa, com um espaço de destaque na minha secretária. Quando acabei a coisinha, devolvi-o à minha P.. Quando me marcaram a defesa, voltei a pedir-lho. Quando fui mestre, devolvi-lho novamente. A rever as primeiras provas do livrinho, descobri que precisava do código da minha P. mais uma vez, porque... não sei... mas tinha ali dúvidas numa frase. Ora, a minha P. tinha acabado precisamente de levar o código, a desagregar-se, para encadernar... na minha editora!!! Fui intensamente gozada pela minha P. e pela minha C., que não me pouparam a farpas tipo "Houve três professores doutores a ler a obra, mas tu, só porque és mestre, achas que descobres um erro que eles ignoraram. Deves ter a mania!" Quem me conhece sabe que, num primeiro momento, posso até tentar assobiar para o ar e pensar noutras paragens, tentando mentalizar-me que se eu escrevi aquilo, se já li aquilo mais de 100 vezes e se os três camaradas da pesada nessas coisas do Direito não viram nada... é porque não há nada para ver. Mas depois, oh pessoal... só quem não me tiver ainda tirado a ficha. Vê-se logo que nem dormia, nem a comida me descia, nem eu sorria... enquanto não tirasse a teima... e a dúvida.
Pela fresca, pedi à minha P. o código. E a minha P. lá se pôs a pé para ir comigo ao Senhor Nunes, pedir para ver a página 656 do dito código velhinho, tipo relíquia, que lá está a encadernar. Até aqui, tudo certo. A questão é que quando cheguei a Coimbra para apanhar a minha P. e seguir para o destino, estava aflita para fazer chichi. Mas tão aflita que nem via, nem ouvia. Mas não pude parar até chegar à editora. Quando saí do carro, tinha um andar um tanto estranho e não parava de me confessar que ou me deixavam fazer chichi ou me dava uma coisa má. A minha P. decidiu então ir cumprimentar uma pessoa conhecida lá na editora para, como quem não quer a coisa, lhe perguntar de seguida onde era a casa de banho. Nesta hora, já eu ponderava pôr em causa a minha reputação logo ali na Rua do Arnado. Mas não. A minha P. lá encontrou a minha salvadora e foi de tentar meter conversa de circunstância. Mas ainda a senhora me estava para dar o segundo beijinho do primeiro connect já eu disparava, com uma voz agressiva mas um olhar de cadela abandonada, "Pode dizer-me onde é uma casa de banho?". Ora a senhora olha-me com algum espanto e explica que vai buscar a chave. Eu começo a suar frio e a imaginar-me numa triste figura logo ali. É que acaba-se já a carreira literária, R. Maria, que tu não és em condições de sair de casa. Pois que ao som das chaves a tilintar respondo com uma pronta desenvoltura para correr a meia maratona. E foi quase isso que andámos. Lá no fim de um pitoresco pátio que eu só consegui apreciar à vinda, estava uma casota fechadinha... que era uma casa de banho. A senhora abre a porta e eu entro desvairada. Nem fecho bem o trinco. Ao ouvir a minha P. matar o tempo daqueles segundos com tentativas de falar em coisas sérias, percebi que uma pessoa não é nada numa hora de aflição. Mas pronto. Tinha feito chichi. Lavo as mãozinhas e saio pronta para recuperar a dignidade própria de uma pessoa normal. Ora... e à saída da casa de banho estão agora, em amena cavaqueira, não apenas a salvadora e a minha P.... mas também... oh céus... um homem nunca visto. Pois que o cumprimento à pressa, sem o reconhecer, uma vez que nunca o tinha visto, e lá seguimos o nosso caminho para junto do Senhor Nunes, que tem o código da minha P., com a valiosa página 656. No trajecto, cai-me a ficha e a medo sussuro "Por acaso aquele senhor que acabei agora de cumprimentar é o Dr. X?". E sou informada que sim. E não desmaio, porque basicamente morro nesse momento. Em suma, eu conheci o meu editor, aquele do muito prazer e da família de autores, à porta de uma casa de banho, e cumprimentei-o com meia bola e força porque já só pensava na página 656 de um livro. Nem que grande gosto encontrá-lo pessoalmente, nem obrigadinha pelas gentilezas, nem vou tentar que aquilo venda e tenho pensado divulgar nos rodapés do Goucha, nem olhe que tem muito bom ar, nem cumprimentos lá para casa. Nada... a não ser o som de um autoclismo a encher!
Ok... semi-morta, lá sigo para o Senhor Nunes. Ora o Senhor Nunes olha-nos de lado, ninguém me tira da cabeça que maldizendo entredentes estas duas caramelas, e diz que o livro está todo cosidinho mas não se pode abrir ou escangalha-se todo. E eu... perdida por cem, perdida por mil... faço olhos de pequena Sereia e deixo escapar, como que inadvertidamente, um "mas era só uma página". Fartinho de me ver, o Senhor Nunes pergunta pela página. 656. É ela a tal! Pois o homem concentra toda a sua arte na mão que segura a lombada e abre com jeitinho o código na desejada. Eu, em posição de perder a guerra, começo a ler "a cópula consentida com menor de dezasseis anos, se não constituir estupro ou violação, é ainda punida como atentado ao pudor". E, em vez de seguir para baixo na folha, ao melhor género de confirmar 7 vezes se desliguei os bicos do fogão, repito autisticamente "a cópula consentida com menor de dezasseis anos, se não constituir estupro ou violação, é ainda punida como atentado ao pudor". À terceira, primo o botão vermelho da paciência do Senhor Nunes, que se despede com um "eu vou é tirar-lhe uma fotocópia". Parou tudo. Ai que o livro rebenta. Ai, oh Afonso! Mas nada feito, que o Senhor Nunes não está para aturar mais tempo gente tão tola. Saio de lá imensamente grata e perante os olhares de pena de quem vê a triste figura de uma mestre de trazer por casa. Despedimo-nos da salvadora e saímos. No passeio, a minha P. ri-se e eu repito, incessantemente, "a cópula consentida com menor de dezasseis anos, se não constituir estupro ou violação, é ainda punida como atentado ao pudor". O Senhor à nossa frente deixa cair a chave do carro e olha-me prontinho a zarpar. Entramos no meu carro e vamos à nossa vida. Chegamos à faculdade com a maior cara de pau, investidas do melhor ar de génias. Mas... lá está... se não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão, temo seriamente que o livrinho só saia se eu me der ao trabalho de o fotocopiar e de lhe meter uns clips para distribuir pelos amigos...
São aventuras destas, que fazem as amizades de verdade... por isso já sabes, conta comigo pra novos episódios de fazer inveja aos melhores comediantes...
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