quinta-feira, 21 de maio de 2009

Dolorosa criatura - a editora

Já fui à minha editora. Mesmo à sede. Cheirar o som das máquinas.
A minha P. tem um código penal de 1852 que me serviu de inspiração para umas quantas páginas do livrinho. É um código emocionalmente a meias com a minha P., esse código. Durante o tempo de execução da linda obra, o código da minha P. morou em minha casa, com um espaço de destaque na minha secretária. Quando acabei a coisinha, devolvi-o à minha P.. Quando me marcaram a defesa, voltei a pedir-lho. Quando fui mestre, devolvi-lho novamente. A rever as primeiras provas do livrinho, descobri que precisava do código da minha P. mais uma vez, porque... não sei... mas tinha ali dúvidas numa frase. Ora, a minha P. tinha acabado precisamente de levar o código, a desagregar-se, para encadernar... na minha editora!!! Fui intensamente gozada pela minha P. e pela minha C., que não me pouparam a farpas tipo "Houve três professores doutores a ler a obra, mas tu, só porque és mestre, achas que descobres um erro que eles ignoraram. Deves ter a mania!" Quem me conhece sabe que, num primeiro momento, posso até tentar assobiar para o ar e pensar noutras paragens, tentando mentalizar-me que se eu escrevi aquilo, se já li aquilo mais de 100 vezes e se os três camaradas da pesada nessas coisas do Direito não viram nada... é porque não há nada para ver. Mas depois, oh pessoal... só quem não me tiver ainda tirado a ficha. Vê-se logo que nem dormia, nem a comida me descia, nem eu sorria... enquanto não tirasse a teima... e a dúvida.
Pela fresca, pedi à minha P. o código. E a minha P. lá se pôs a pé para ir comigo ao Senhor Nunes, pedir para ver a página 656 do dito código velhinho, tipo relíquia, que lá está a encadernar. Até aqui, tudo certo. A questão é que quando cheguei a Coimbra para apanhar a minha P. e seguir para o destino, estava aflita para fazer chichi. Mas tão aflita que nem via, nem ouvia. Mas não pude parar até chegar à editora. Quando saí do carro, tinha um andar um tanto estranho e não parava de me confessar que ou me deixavam fazer chichi ou me dava uma coisa má. A minha P. decidiu então ir cumprimentar uma pessoa conhecida lá na editora para, como quem não quer a coisa, lhe perguntar de seguida onde era a casa de banho. Nesta hora, já eu ponderava pôr em causa a minha reputação logo ali na Rua do Arnado. Mas não. A minha P. lá encontrou a minha salvadora e foi de tentar meter conversa de circunstância. Mas ainda a senhora me estava para dar o segundo beijinho do primeiro connect já eu disparava, com uma voz agressiva mas um olhar de cadela abandonada, "Pode dizer-me onde é uma casa de banho?". Ora a senhora olha-me com algum espanto e explica que vai buscar a chave. Eu começo a suar frio e a imaginar-me numa triste figura logo ali. É que acaba-se já a carreira literária, R. Maria, que tu não és em condições de sair de casa. Pois que ao som das chaves a tilintar respondo com uma pronta desenvoltura para correr a meia maratona. E foi quase isso que andámos. Lá no fim de um pitoresco pátio que eu só consegui apreciar à vinda, estava uma casota fechadinha... que era uma casa de banho. A senhora abre a porta e eu entro desvairada. Nem fecho bem o trinco. Ao ouvir a minha P. matar o tempo daqueles segundos com tentativas de falar em coisas sérias, percebi que uma pessoa não é nada numa hora de aflição. Mas pronto. Tinha feito chichi. Lavo as mãozinhas e saio pronta para recuperar a dignidade própria de uma pessoa normal. Ora... e à saída da casa de banho estão agora, em amena cavaqueira, não apenas a salvadora e a minha P.... mas também... oh céus... um homem nunca visto. Pois que o cumprimento à pressa, sem o reconhecer, uma vez que nunca o tinha visto, e lá seguimos o nosso caminho para junto do Senhor Nunes, que tem o código da minha P., com a valiosa página 656. No trajecto, cai-me a ficha e a medo sussuro "Por acaso aquele senhor que acabei agora de cumprimentar é o Dr. X?". E sou informada que sim. E não desmaio, porque basicamente morro nesse momento. Em suma, eu conheci o meu editor, aquele do muito prazer e da família de autores, à porta de uma casa de banho, e cumprimentei-o com meia bola e força porque já só pensava na página 656 de um livro. Nem que grande gosto encontrá-lo pessoalmente, nem obrigadinha pelas gentilezas, nem vou tentar que aquilo venda e tenho pensado divulgar nos rodapés do Goucha, nem olhe que tem muito bom ar, nem cumprimentos lá para casa. Nada... a não ser o som de um autoclismo a encher!
Ok... semi-morta, lá sigo para o Senhor Nunes. Ora o Senhor Nunes olha-nos de lado, ninguém me tira da cabeça que maldizendo entredentes estas duas caramelas, e diz que o livro está todo cosidinho mas não se pode abrir ou escangalha-se todo. E eu... perdida por cem, perdida por mil... faço olhos de pequena Sereia e deixo escapar, como que inadvertidamente, um "mas era só uma página". Fartinho de me ver, o Senhor Nunes pergunta pela página. 656. É ela a tal! Pois o homem concentra toda a sua arte na mão que segura a lombada e abre com jeitinho o código na desejada. Eu, em posição de perder a guerra, começo a ler "a cópula consentida com menor de dezasseis anos, se não constituir estupro ou violação, é ainda punida como atentado ao pudor". E, em vez de seguir para baixo na folha, ao melhor género de confirmar 7 vezes se desliguei os bicos do fogão, repito autisticamente "a cópula consentida com menor de dezasseis anos, se não constituir estupro ou violação, é ainda punida como atentado ao pudor". À terceira, primo o botão vermelho da paciência do Senhor Nunes, que se despede com um "eu vou é tirar-lhe uma fotocópia". Parou tudo. Ai que o livro rebenta. Ai, oh Afonso! Mas nada feito, que o Senhor Nunes não está para aturar mais tempo gente tão tola. Saio de lá imensamente grata e perante os olhares de pena de quem vê a triste figura de uma mestre de trazer por casa. Despedimo-nos da salvadora e saímos. No passeio, a minha P. ri-se e eu repito, incessantemente, "a cópula consentida com menor de dezasseis anos, se não constituir estupro ou violação, é ainda punida como atentado ao pudor". O Senhor à nossa frente deixa cair a chave do carro e olha-me prontinho a zarpar. Entramos no meu carro e vamos à nossa vida. Chegamos à faculdade com a maior cara de pau, investidas do melhor ar de génias. Mas... lá está... se não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão, temo seriamente que o livrinho só saia se eu me der ao trabalho de o fotocopiar e de lhe meter uns clips para distribuir pelos amigos...

1 comentário:

  1. São aventuras destas, que fazem as amizades de verdade... por isso já sabes, conta comigo pra novos episódios de fazer inveja aos melhores comediantes...

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