terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Uma história

Houve uma altura da minha vida em que via o meu futuro todo direitinho à minha frente: era acabar o curso, esperar dois anos para ir para o CEJ, mas, para não me desabituar de estudar e me manter actualizada, fazer o estágio de advocacia e o mestrado nesses dois anos. Depois era concorrer. Ao mesmo tempo era a mãe e as avós acenderem muitas velinhas à Nossa Senhora. E a seguir era saber de ter entrado. E chorar de emoção. E ir para lá e sofrer horrores a estudar mundos e fundos e depois passar naqueles testes todos e um dia um dos chefes do estaminé dizer: Parabéns à senhora auditora, que agora afinal já é juiz. Ora vá lá à sua vida e lembre-se de ler sempre a lei com a lupa do bom senso. E pronto. A partir daí era correr as capelinhas uns anos até assentar arraiais na minha cidade e ficar velhinha e morrer.

Mas... não foi nada disto que aconteceu. Eu acabei o curso, isso sim. E fiz o estágio, isso também. Mas de resto não foi nada disso. Fui trabalhar para o último sítio em que imaginei um dia trabalhar e com isso fui adiando o mestrado, que agora está em agonia à espera dos golpes mortais dos samurais eleitos para o júri. E a vida foi-se encarregando de me baralhar as certezas todas e de me fazer perceber que a maior parte das vezes em que julguei, julguei mal. E por isso, fui-me agachando feita mona e fazendo finca pé de nunca na vida ser juiz. E agora falam-me nisso e só falta desatar num berreiro porque não quero, e não quero, e não quero.

E então, mas o que é que eu faço agora?!
Bem... às vezes, até finjo que trabalho. Mas o que eu gosto mesmo mais de fazer é aprender constantemente e aprender até nas horas em que parece que estou a ensinar alguma coisa. Mas ninguém ensina nada. Há é pessoas com o dom de ajudar os outros a aprender alguma coisa. Eu gosto de me perder nas horas, a falar com os alunos. Eu gosto de lhes inventar hipóteses e de, passados uns dias, saber que também eles já inventam hipóteses. Eu gosto de ouvir o "yes" de quem passa numa prova oral. Eu gosto de andar por ali. E gosto de não me sentir longe daquela minha casa. Porque aquilo estranha-se, mas depois entranha-se. E gosto de lhe ir conhecendo recantos e manhas. E de lhe ir tecendo críticas aligeiradas pela cumplicidade amante. E já ando com contracções pela hora do parto do meu adeus. Que levo dali coisas assimcomassim inesquecíveis. Muitas horas de desespero, mas muitos momentos de uma cumplicidade inigualável. Duas melhores amigas. Amores e humores. É que foi por lá que fui conhecendo outras vontades. E delineando-me no querer. E assim pertencendo ao sítio aonde era suposto não estar. Por me caírem os mitos. Feitos, quase todos, para cair. Quase.







Mas, de tudo, uma mágoa que se agiganta: a desesperança nas peças processuais a serem produzidas por quem escreve "tamém"; "à dias"; "cônjugue"; "lei da liberdade rilijiosa"; "colassão"; "no caso que nos é controvertido"; "erdeiros"; "economia estacionada"; "a nossa posição actual é do positivismo"; "divórçio"; "regime dos bens do casamento adquiridos em geral"; "o divórcio litigioso é a autópsia do casamento já morto"; "a lei diz que podem adoptar os maiores de 25, logo, se ela tem 25, não pode adoptar"; "requesitos"; "estrumentos de control"... e outras que, à medida que me for lembrando, acrescentarei.
Eu corrijo. Assinalo (a lápis, que não lhes usaria vermelho). Não desconto, mas desanco. Mas nada. Não lêem. É o que diz a minha mãe: não lêem!

3 comentários:

  1. Bonito, muito bonito o texto.
    Mas não vale a pena torturar-nos pelos desalinhos da vida - quem disse que não são alinhos ?

    De quem entrou e passou pelo CEJ, em arrumo alinhado e depois se confrontou com tantos "desalinhos"... (incluindo o "tique" de assinalar a lápis ( ?) os erros ortográficos de quem terá passado nesses exames e transporta a mesma sabedoria para peças processuais).

    Bj.
    C (EN)

    ResponderEliminar
  2. Gostei! Fez-me recordar de quando também por lá passei! Talvez uns anos antes... do lado dos que davam erros de ortografia, mas quando não havia lá, do outro lado, quem nos percebesse assim...há pessoas que têm determinados dons... continua assim....

    ResponderEliminar