terça-feira, 17 de outubro de 2017

Do negro

As terças são os meus dias de Porto. Saio cedo, deixo o meu filho na creche e rumo ao Norte. Faço sempre o mesmo caminho e demoro sempre mais ou menos uma hora. Menos hoje. Hoje vim devagar, quase parando, na faixa dos camiões e ultrapassada por eles. Esmagada por quilómetros sem fim de um fumo denso e as silhuetas negras de árvores que ladeiam o meu caminho. Não há, para quem segue pela A1, na zona de Aveiro, um palmo de verde que se aviste. É tudo fim. É tudo passado. Há rescaldos feitos à pressa e fábricas no chão como um baralho de cartas que é tomado pelo vento. Inteirinhas. Dos Armazéns Reis, compradores sobejamente conhecidos da marca Moviflor, resta a memória e um entulho que ainda não houve tempo de apanhar. Não sobra nada a não ser um caminho para a frente, a sós, resilientes como nos mandam. Não há desculpa. Não quero saber quem sai ou quem entra porque, por mim, podem todos morrer longe enquanto nos gozarem com a lata displicente de quem se sente acima do abismo. Vão à merda com os relatórios e os estudos e as Comissões e os independentes e o raio que vos parta. É estrutural, porra. É de fundo, estúpidos. Falha sempre tudo, inevitavelmente, quando o adversário se chama incêndio. Não vale a pena arranjar desculpas. Há escolhas a fazer: queremos uma indústria que factura à custa disto ou queremos uma floresta? Escolham: o lobby das celuloses ou a vida das pessoas? Decidam, antas. Mas não nos continuem a enganar. É o lobby das celuloses? É? Muito bem. Assim faz sentido mandarem-nos ser resilientes e proactivos, cagarem de alto nos números de área ardida e nas lesões respiratórias provocadas por um ar carregado de cinza, passarem por cima da quantidade de cadáveres que vos deviam pesar na consciência e preocuparem-se com as férias. Pronto. É assim, não é? Muito bem. Mas, então, não esperem nada mais de nós senão ódio visceral, revolta de entranhas e uma mensagem pública de que somos governados por anedotas travestidas de gente. Tenho vergonha alheia por cada um de vós, gente pequenina. 

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