a reiterada assumpção de que a adopção por casais de pessoas do mesmo sexo não deve ser admitida é uma questão de escolha cívica, moral e até, porque não dizê-lo, religiosa. A adopção plena, como primeiro e último reduto legal ao dispor, entre nós, para a equiparação de uma relação entre duas pessoas à relação biológica da filiação, é uma noção. Ora, como todas as noções, também esta pode sofrer mudanças, alterações conceptuais, enfim. Tantas outras, tão ou mais importantes, sofreram esta erosão do devir histórico. Porquê teimar na cristalização do que é tanto da vida, bem se sabendo que não há nada mais inconstante que ela, precisamente, a vida?! A dignidade, a igualdade, a liberdade, a honra, a intimidade... tantas palavras que o tempo foi moldando de forma a tomarem o gosto do novo sem perderem a sua essência. Porque não a adopção?! Vejamos: a adopção é o vínculo jurídico pelo qual se unem duas pessoas, verificando-se que entre estas estão reunidas todas as condições para que a sua relação se assemelhe à relação de filiação. O enfoque está posto na relação que se espera que se estabeleça. Só. Ver muito mais que isto no Código Civil ou na legislação de menores em Portugal é, desculpem a expressão, pôr o carro à frente dos bois. Permite-se a adopção singular, indepentedentemente da opção sexual do candidato e da possibilidade que a este assiste de casar com alguém do mesmo sexo. Permite-se a entrega, a título de medida de protecção, de uma criança ou jovem, a uma pessoa idónea, independentemente da sua orientação sexual. Permite-se a entrega a terceira pessoa, em termos mais latos, independentemente da orientação sexual desta. Expliquem-me porque insistimos em manter na lei uma coisa que não se coaduna com a realidade das coisas. Expliquem-me qual é a diferença, em termos de qualidade da vinculação, não percamos o nosso norte, entre ter uma criança adoptada só pelo senhor x, que, por sua vez, é casado com o senhor y, criança esta afectivamente ligada de igual modo a ambos, com convivência familiar equiparada a um e a outro, que às segundas e quartas vai à piscina com o x e às terças e quintas vai ao inglês com o y e a mesma criança adoptada por ambos. As menções do registo civil?! Huuummm. Muito bem. E agora os direitos das pessoas cedem perante as minudências das questões burocráticas do registo civil?! Muito me contam. Mas adiante. Não concordo sequer com a opinião de quem diz que a adopção por casais homossexuais não pode ser prevista legalmente porque precisa de ser analisada caso a caso. Oi?! Então e estar previsto em lei bule de algum modo com a minúcia do estudo do caso concreto?! Está tudo doido?! A adopção por casais heterossexuais não é feita por chapa cinco (embora ainda haja quem ache que sim). Porque se atentam em todas as peculiaridades do caso é que muitos casos podem ser mais demorados. Mais. Eu gostava de perceber como é que, não se prevendo em lei, geral e abstracta, a possibilidade, se podem ir estudar os casos. Ou melhor, que utilidade teria isso. Porque ainda que se chegasse à conclusão que sim, que aquela é a família melhor para a criança em concreto, não havendo previsão legal, lá teríamos nós que inventar nomes para as relações que as pessoas criariam e que ultrapassam, quase sempre, o que o melhor de todos os legisladores pode inventar. Acho o nobre papel do direito absolutamente imprescindível na regulação da vida em comunidade, mas adorava que não fosse esquecido que o direito é um plus, subsidiário do bom senso, acessório da serenidade. Que me digam que a sociedade, na sua maioria democraticamente respeitável, não quer, que os costumes e tradições e papéis que associamos às pessoas ainda não permitem chegar a tanto ou que, a par da sexualidade que não para efeitos meramente reprodutivos, a religião continua a dizer que isto é pecado, eu aceito. Não gosto, mas aceito. Mas que continuem a insistir que as coisas se mantêm tal qual como estão porque somos reféns do direito, isso não. Porque isso é mentira. Vi a reportagem da SIC de hoje e pretendo ver a de amanhã. Tenho esperança que um dia, bem mais cedo que aquele em que se nos hão-de apaziguar as almas para pensarmos em coisas maiores por termos já o deficit controlado, alguém se lembre que o direito, tal como os impossíveis, é uma das medidas do Homem.