terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Rui Pedro


Na altura em que o Rui Pedro desapareceu, o meu irmão tinha quatro anos. Muito por causa do desaparecimento do Rui Pedro, o meu irmão foi, conscientemente, educado de uma maneira radicalmente diferente da minha. Não foi porque os tempos fossem outros, muito distintos. Foi porque a minha mãe passou a temer, com todas as suas forças, sofrer um dia esta dor aguda que os olhos da mãe Filomena gritam de cada vez que a vemos. O meu irmão nunca foi, nem pré adolescente, sozinho para a escola, nunca foi de bicicleta para a música, para a catequese, para a piscina, para o futebol, para casa de um primo ou dos avós. O meu irmão nunca foi de comboio para o inglês, nunca esperou mais do que dois minutos que alguém o fosse apanhar à porta da escola, nunca foi numa viagem sem adultos. Passei tardes inteiras dentro do carro, a estudar para os exames ou a ler ou a ouvir música, à porta da escola de música, do British Council, da capela ou do Centro onde tinha Jazz. Se os meus pais não pudessem, se não fosse demasiado pesado para mim e pudesse aliviar-lhes as tarefas numa ou outra semana, cabia-me a mim fazê-lo. Nunca me lembro de deixar o meu irmão à porta do colégio e de não esperar que entrasse. Precisava de o ver passar o portão, cumprimentar o segurança e seguir, muros adentro, de mochila às costas. O meu irmão, amor imenso em forma de gente que a vida me deu, é, para mim, meio irmão, meio filho. Talvez por isso, os olhos da Filomena também me agridam a paz possível a que o esquecimento deste episódio pode dar guarida se não virmos esta mãe durante algum tempo. O meu irfilho não brincou na rua, não foi sozinho procurar amoras nas silvas junto à fonte e nem jogou às escondidas em casas abandonadas há décadas. Eu fiz isso tudo. Sempre acompanhada apenas do meu primo Pedro. Isso e muito mais coisas, como tomar banho no rio, correr atrás dos autocarros, descer ladeiras de bicicleta sem mãos e sem pés (felizmente, nunca sem dentes). O meu irmão, não. O meu irmão viu muitos filmes, jogou muita playstation, muito bilhar, muito futebol, mas tudo em casa. O meu irmão passou muitas tardes com amigos, mas sempre sob a supervisão de adultos. E isso, necessariamente, há-de ter-nos feito pessoas diferentes. Eu fiz Erasmus sozinha, decidi que queria fazer um curso de inglês fora aos dezasseis anos e nada temi particularmente na noite em que atravessei a Sereia. O meu irmão gosta muito de dizer que é aventureiro e mimimi, mas nunca aceitou sequer a hipótese de ir estudar para muito longe de casa. Hoje é um homem. Provavelmente, mais corajoso e destemido até que eu. Mas foi vigiado muito mais e até muito mais tarde. A minha noção de liberdade é, indiscutivelmente, muito mais ampla (bem, não há-de também ser indiferente eu ter vivido até aos 18 anos sem telemóvel...). Mas enfim, tudo isto para dizer que o Rui Pedro é uma memória demasiado presente na minha vida. O Rui Pedro e a Filomena são pessoas com as quais me identifico, sofrem dores a que nunca fui sequer um bocadinho indiferente. E é por isso que hoje, ao encontrar este apelo, mais uma vez, se reacendeu a minha esperança em milagres. Não me perguntem porquê, mas acredito que, se houver justiça no Mundo, esta mãe não morre sem saber o que aconteceu ao seu filho.

1 comentário:

  1. Na altura em que o Rui Pedro desapareceu era eu uma criança e o meu irmão um bébé de meses, mas lembro-me de ficar super assustada com isto. Enquanto se falou sobre o assunto nos telejornais e em qualquer lado onde fosse, temi pela minha segurança, pensava no que seria de mim sem os meus pais. Não tive, portanto, esse lado protetor de mãe, mas o lado assustado de criança. Ainda para mais eu vivo a pouquíssimos quilómetros do local de onde ele desapareceu, o senhor que é suspeita de estar envolvido nisto é praticamente meu vizinho, pode imaginar o terror de uma criança pequena ao saber disto tudo.
    Cresci a ver esta senhora ficar magra magra magra, com aqueles olhos de dor. Não sei como tem forças para continuar a lutar durante tanto tempo, mas admiro-a imenso por isso. Deve ser isto que significa ser mãe.

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