terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Da praxe... por partes

Tenho andado a adiar escrever sobre isto. O tempo não abunda e achei que, mais cedo ou mais tarde, o assunto seria direccionado para o que interessa e eu escusava de gastar o meu latim. Mas já passou demasiado tempo e a confusão mental perdura e então, pronto, lá me decidi. Tenho este defeito grande de me custar ficar calada. Perco mais do que o que ganho, mas está-me na massa do sangue. Há quinze anos, quando entrei na faculdade, também eu fui praxada. E nos anos que se seguiram, bem, nos anos que se seguiram, também eu praxei. E olhem que praxei muito. Praxei muito com cantigas, com teatros de rua, com brincadeiras na Baixa, com reclamações se as declarações de amor não fossem feitas a preceito, se a saia andasse demasiado curta ou se decidissem levar gaiolas nas orelhas para a Serenata, ignorando a regra de deverem ser discretas. Ninguém morreu. Ninguém adoeceu. Ninguém endoideceu. Ponto. Isto é a praxe. Há um Código da Praxe que, sim, como li alguém comentar esta semana, tem mais artigos que a Constituição. Não me parece mal.  Alguns livros da MRP têm mais páginas que "A trança de Inês", da Rosa Lobato Faria, e ninguém acha estranho. Honestamente, o Código é um livro como os outros, que li com a pressa de quem quer aprender tudo sobre uma tradição saudável que marca, também, uma mudança na sua vida. A praxe serve mesmo para integrar. É pela praxe que os mais velhos encontram os mais novos, lhes ensinam onde podem tirar cópias, almoçar mais baratinho ou sair à noite sem perigos. É pela praxe que pessoas de diferentes anos de um curso se tornam amigas para a vida, alternam as casas de realização das jantaradas e aprendem a seleccionar a melhor bibliografia de cada cadeira. Pela praxe é que se sabe que há uma Cecopi, mas que, regra geral, os apontamentos não são de fiar, que a professora x dá aulas melhores que a y e que o Relatório é o pesadelo da 2.ª turma de Família. Isto é a praxe. Matar pessoas é homicídio. Bater nelas é ofensa à integridade física. Chamar-lhes puta é injúria. Obrigá-las a fazer o que não querem é coacção. Deixá-las por aí ao Deus dará, das duas uma, mas pode ser sequestro, pode ser exposição ou abandono, pode ser omissão de auxílio... And so on. Resumindo: nada disto é praxe. O problema da tragédia do Meco, portanto, começa numa absurda confusão de conceitos. Nada daquilo é praxe. E não é porque aqueles alunos que eu ouvi na televisão dizem que aquilo é praxe que aquilo passa a ser praxe. Porque se eu disser que o amarelo é verde, não é por isso que o amarelo passa a ser verde. Mais grave, porém, é pegar-se na confusão de conceitos e, partindo dela, tentar resolver o problema do caso concreto com soluções alegadamente gerais e abstractas. O maior disparate que ouvi nos últimos tempos, a seguir à aprovação do referendo da coadopção, foi sobre a necessidade de criminalização da praxe. A sério. Por quem lá têm, importam-se de deixar o direito penal em paz?! Só desta vez. Pleeease. Já vamos na vigésima nona alteração a um código penal com pouco mais de trinta anos. Isto não vos diz nada?! Um dia destes tenho de começar a dizer aos meus alunos que o direito penal é prius e não ultima ratio na resolução do conflito de interesses. Isto não é praxe. Isto é crime. E os crimes nada têm a ver com a praxe. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Não é possível praticar um crime no âmbito da praxe. Se se pratica um crime, antes de mais, tem de se identificar a impropriedade do uso do termo praxe. Tenho muita pena dos jovens que morreram no Meco. Eram, indiscutivelmente, pessoas demasiado desinformadas. Só isso justifica que tenham achado que assinarem um termo de responsabilidade tinha algum tipo de valor de justificação penal quando dispunham da integridade física e da vida. É essa impreparação que me permite desculpar também os que, confusos, trapalhões da língua, continuam a dizer que o problema é das praxes. Enfim. Tenho dito.

5 comentários:

  1. Onde é que eu assino?
    Praxe é ensinarem-nos que o Jardim da Sereia à noite é perigoso, e que o Penedo da Saudade é bonito mas é para ver de dia, que as sandes das Amarelas são boas e há comida vegetariana também, que os grelhados são caros e às vezes não vale a pena o preço, que a (antiga) Via Latina e o (antigo) DD são ícones da cidade mas cuidado com andar por aí de noite sozinho, cuidado com as bebidas que se perdem de vista, que o lanche em Electro é muito melhor que em Informática mas mais caro, que ali na Carlos Seixas há um senhor que tira fotocópias em conta e até é simpático, que o Samambaia é um ponto de encontro à quinta-feira e o 24T é o nosso autocarro porque é o que nos leva à Praça, enfim, para mim tudo isto fez parte da praxe.

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  2. Até que enfim alguém a escrever sobre a praxe como deve ser...Obrigado R. :)

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  3. Finalmente alguém que escreve aquilo que eu penso. Fui (muito bem) praxada e agora também praxo ativamente. Sou acérrima defensora da praxe, mas da praxe a sério, não destas ilegalidades e faltas de respeito pelos outros que muitos gostam de apelidar como "praxes". Chateia-me que ja tenha corrido tanta tinta sobre praxe por uma coisa que é crime e não "praxes", como lhe chamam. Chateia-me que ponham sequer em causa a existência de uma tradição tão antiga e tão bonita só porque meia dúzia de marmanjões não sabe ter respeito pelos outros e abusam do "poder", usando o traje como desculpa para humilharem os outros que estão abaixo na hierarquia. E chateia-me esta hipocrisia das pessoas porque no Porto, onde estudo, (não sei como é noutros lados) as pessoas adoram ver estudantes trajados nas alturas da Semana de Receção ao Caloiro e da Queima; somos todos muito lindos e um orgulho para a cidade; adoram ver finalistas com as fitas e depois cartolados, mas isso é só quando é bonito ver na rua, quando se fazem reportagens de tv sobre o cortejo; nos outros dias somos uns bebados e drogados que só fazem mal aos pobrezinhos dos caloiros. Isso irrita-me profundamente!

    Eu sou praxista com muito muito orgulho e vivo a praxe de alma e coração, sempre com respeito pela tradição e pelos outros. Só assim (me) faz sentido. Isto é praxe. Tudo o que se tem ouvido na tv e que, invariavelmente leva o nome Praxe arrastado pela lama, não é praxe. É crime.

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