segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Austeridade e indignação

Para bem ser, a austeridade a que é sujeito e a indignação que acalenta um povo deviam caminhar em proporções diametralmente opostas. Podia jurar que um gráfico onde pudesse ler-se isto resumiria o estado de saúde anímica de um povo. O facto de o meu país me contrariar a previsão deixou-me perante uma triste encruzilhada: ou refaço os cálculos, ou concedo no seu mal ruim. Não consigo refazer os cálculos. Por mais voltas que lhes dê, nenhuns outros me parecem mais equilibrados. Por isso, com um profundo lamento entalado em mim, devo contar-vos que... Portugal está doente. Muito doente. Ora... Portugal estar doente já seria, por si, coisa de suficiente gravidade para nos atermos a procurar-lhe mezinhas de cura. Mas o grave, meus caros, é que não há tempo para isso. O mal ruim chegou mais longe. Sorrateiro e manhoso, galgou os montes e vales do território, infiltrou-se nos lençóis de água e contaminou o ar... e agora estão doentes os portugueses. É um povo inteiro doente. Doente. Mesmo doente. Quarenta anos de ditadura domaram-nos bem, dirão alguns. Eu cá, acho que não. Acho que não é isso. Nem é que não é só isso. É mesmo que não é isso, de todo. Já ninguém se lembra dos quarenta anos. Pelo menos, ninguém dos que, mais doentes entre os doentes, deviam agarrar o mal pelos cornos e virar a sorte à doença. As novas medidas de austeridade anunciadas pelo Governo caíram no horizonte dos portugueses como uma coisa que não é bem connosco. Cada vez que se anuncia um aumento da gasolina, um novo corte nos salários, o fecho de mais um serviço de saúde, outro despedimento colectivo de milhares de trabalhadores, a não colocação de outro tanto de professores, propostas de trabalho insultuosas a trabalhadores qualificados, o fecho de outra centena de PME's, rankings mundiais de misérias humanas em que tomamos a dianteira, o povo olha, como se se ganzasse todos os dias em jejum, e segue em frente, como se fosse um autómato. Perdemos a capacidade de nos indignar. Nós, pessoas, não nos indignamos. Ensimesmamo-nos na nossa vidinha, cumprimos as nossas obrigações, preocupamo-nos com as nossas férias, o nosso empréstimo, o nosso carrinho, a nossa casinha, o nosso almocinho e o nosso jantarinho e deitamo-nos todos os dias e acordamos todos os dias e continuamos a não conseguir indignar-nos. Não vos falo da indignação de mesa de café, em que se arrotam postas de pescada e se manda o primeiro ministro meter a austeridade no cu. Não é dessa indignação que eu falo. Não falo sequer na indignação de mandar a Merkel à merda quando aparece na televisão ou dizer que a Troika e o Mimi são uns cães raivosos que nos comeram a carne e agora teimam em roer-nos os ossos. Não, meus caros. Também não falo da indignação que tem produzido espectáculos deprimentes em forma de manifestação. Não. Eu falo da indignação de quem pára dois minutos e se põe a pensar. A pensar sem medo de descobrir que o caminho não se anuncia favorável. Quero contar-vos da indignação que é parte da cura do mal ruim de que padecemos todos, como se não nos sentíssemos mais que caganetas de cães zarolhos e coxos, inevitáveis fazedores de dias todos iguais e operadores automáticos de mensagens de desalento. Prepara-se, ao que sei, uma mega concentração, em Lisboa, para o próximo dia 15. Não vou. Gostava que não fosse preciso ir. Gostava, pela primeira vez, que o povo saísse à rua indignado, mas onde está. À sua rua. E sempre. Todos os dias. Gostava que entupíssemos de mails e cartas os gabinetes de quem manda com mensagens que dissessem apenas "Estou indignado/a!". Gostava que cada um de nós continuasse, no dia 15 e nos outros todos, a sair responsavelmente da cama, mas, indignados, não berrássemos, não fizéssemos barulho nenhum. Gostava que a nossa indignação não se esgotasse como se esgota a voz se falamos demais. A indignação de que vos falo não se cala nunca. Só connosco. Não proponho que amuemos, longe disso. Proponho que nos ponhamos a dar o exemplo. Produzindo queixas para o Provedor de Justiça, não deixando cair o insulto produzido contra nós por pessoas como o ex Primeiro Ministro ou o dr. Relvas da mula russa. Quem é que manda aqui, afinal?! São eles ou somos nós?! Não temos de andar ao beija mão, pessoas. Nós não somos responsáveis pelos maus actos de quem elegemos para nos governar e a quem confiámos os destinos de um país e de um povo inteiro, porra. Isto não é nenhuma inevitabilidade. Bem sei que não há oferta digna na oposição, mas não será esta a hora de, pela indignação, aparecerem os bons, os mesmo bons?! Não são os espertos, os que precisam da política. São aqueles de que a política precisa, o que faz toda a diferença. Não tenho nada contra o facto de, depois, se cercarem de amigos, desde que os amigos sejam competentes e respeitem o princípio básico de não quererem servir-se da política, mas estarem empenhados em servir Portugal e os portugueses, que não deve haver desígnio de nobreza maior. Digam-me, honestamente, se deixaram mesmo de acreditar que há solução. Não podem. Não é possível que tamanha pequenez de ambição saudável vos tenha comido a todos. Se isto é difícil? É. Deve ser. Quase impossível. Mas pelas razões todas para que deite às urtigas a minha indignação, respinga-me uma dúvida: em nome de quê?! Não há nada digno por que lutar no caminho oposto. Não podemos formatar toda a gente por igual e dizer aos boys que afinal, se calhar, é preciso pensarem menos no seu seguidismo por uns tempos em nome de uma coisa maior: o bem comum. Não podemos. Mas podemos pedir-lhes que pensem se, parando, não acham que a sua dignidade vale mais que o tacho com que lhes vêm acenando há meses. E podemos bem passar sem esses inválidos ideológicos, pessoas. Se formos mais. Se formos muitos. Se formos quase todos. Grandes. Inteiros. Indignados. No dia em que não houver abstenção e a contabilidade dos votos em branco deixar de fora apenas os seguidistas listados e, simultaneamente, desprovidos de bom senso, estas soluções que hoje temos darão, inevitavelmente, lugar a outras. Melhores, se fruto da massa crítica de quem se indignou e decidiu incomodar-se, não por precisar da política, mas porque a política, como já disse, precisa de si. Por todas as razões e mais algumas, sou pessoa dada ao direito, à ordem e à segurança. Por essas razões todas e outras tantas, nada disso me parece útil sem liberdade. Não quero indignar-vos para que vos seja mais fácil o acesso ao subsídio de desemprego. Não quero indignar-vos para que se reformem mais depressa, não quero indignar-vos para que acelerem o processo da emigração, não quero indignar-vos para se agarrem aos empregos maus como se fossem bons. Quero que se indignem a tempo de ainda viverem como têm direito: com o melhor possível. E isto, meus caros, não é o melhor possível. Enquanto tudo valer a pena, tudo for aceite à espera do que não chega e sem que haja dignidade nos lugares que nos ocupamos de preencher em eleições livres e democráticas, isto não é o melhor possível. Eu não quero saber quantos euros vou perder. Eu quero saber se é hoje que começamos a indignar-nos e a apurar responsabilidades, a fazer cumprir sentenças, diluindo, para sempre, a confusão entre os poderes, e a pegar nas rédeas deste país. Não me ofereço para a política. Tal como não me ofereço para muitas outras profissões ou missões. Aguardo as manifestações honestas dos indignados que sabem poder dar um contributo sério para acabar com isto. Sem ideologia outra que não seja esta: devolver ao cidadão de bem a sua condição de humano digno. Capaz de parar e pensar que, quando nada lhe conduz a vida pelo caminho que lhe dá o melhor possível, ainda há tempo para mudar de rumo. Indignemo-nos, caramba. Indignemo-nos com os salários, indignemo-nos com os serviços de saúde a rebentarem pelas costuras, indignemo-nos com o fim dos controladores das portagens, substituídos por máquinas, indignemo-nos com o ritual burocrático a que nos sujeitam todos os serviços do Estado, indignemo-nos com as parcerias público privadas, indignemo-nos com os negócios dos pavilhões atlânticos que por aí há, indignemo-nos com a falta de autoridade das escolas, com a demissão das famílias na formação dos seus filhos, indignemo-nos com o aumento dos impostos, com a redução das deduções do IRS, indignemo-nos com os mecanismos de atrofio dos nossos empresários honestos, esgotados, incapazes de continuar a remar contra tamanha maré, indignemo-nos com os lucros dos bancos,  indignemo-nos com os sucessivos cortes na cultura, indignemo-nos com as comitivas políticas que seguem viagem para inutilidades fora do país. Ou este Portugal deixa de ter lugar para nós. Indignemo-nos... pela nossa saúde. 

1 comentário:

  1. Se estivesses perto de mim dava-te uma grande beijoca! Gostei de cada palavra que me doeu em cada esperança (ainda assim esperança). Acho óptima a ideia de darmos espaço à nossa voz. À de cada um e fazê-la chegar a quem a nos desgoverna, nos tenta matar os sonhos e nos escurece os dias...

    'Bora fazer uma corrente de cartas onde possamos colocar as nossas dúvidas. Mas à moda antiga, escritas em papel, que isto de estar a escrever nas "paredes" virtuais dos auto proclamados amigos virtuais é facilmente comido pelo passar alucinado do tempo virtual! Dirigidas a alguém obrigado a responder (quem?)! Sempre garantíamos que os CTT tivessem trabalho...

    O que te parece?

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