Poucos sabem, mas lá em casa (dos meus pais) há uma tarefa que precisa de se fechar urgentemente, que é difícil, que é muito, muito difícil, que nos tem consumido a todos nos últimos quase nove meses, que o pai insistiu ter de fazer sozinho durante muito tempo, que gerou muitos serões de discussão, que já nos fez aos quatro chorar muitas vezes, como no domingo. Se alguém de fora avaliasse esses momentos, diria que nos zangamos, que desistimos uns dos outros. Não é verdade. Porque não desistimos, é que temos os nervos à flor da pele, é que cada passo em falso do outro nos parece um erro sem desculpa. Mas não desistimos. E, às vezes, depois de chorarmos, damos um abraço colectivo. Nos últimos tempos, um, dois anos, relembrámos (eu acho que já sabíamos) que o ter não é nada. Que um dia se pode ter tudo, mesmo tudo, e no outro se pode ter nada, ou quase nada. O ser, esse, é que distingue a massa de que são feitos os homens. E, às vezes, é quando o ser não se verga ao ter muito ou ao ter nada que somos postos à prova. Temos sido muito postos à prova. E acho que não temos quebrado. Desde ontem, há uma rotina diária em casa dos meus pais. Que dura das vinte e uma à meia noite e os reúne na mesa redonda do andar de baixo, em frente à lareira que ainda não se acende, a separar, catalogar, etiquetar, juntar e despachar papéis. Porque, apesar de tudo, nos querem poupar, como que certos que, sem culpas, há aqui papéis que não devem inverter-se, ou, pelo menos, inverter-se mais vezes: os dos pais e os dos filhos. Há dias, muitos, em que não acredito que isto acabe. Há outros, como hoje, em que o meu coração se enche outra vez de esperança.