Depois de almoçar a olhar para o rio, percorro, em palração amena, a feira de artesanato e, mais abaixo, a do livro. Contemplo aquela parte da cidade, tantas vezes mal aproveitada por quem cá mora, e pergunto-me por que não levei computador. Bem que me saberia continuar a escrever ali, a tomar o sol e o vento na cara, no peito, nos braços, nas pernas, nos pés quase descalços. Inspiro e expiro longamente enquanto faço o caminho de volta ao carro e apercebo-me das coincidências com outras vezes em que também tive de o deixar lá tão ao fundo. Não me insurjo. Se querem saber, não me nada. Continuo o caminho, sacudindo pedrinhas miúdas que se esgueiram para as sandálias, e escolho pensar noutras coisas, organizar o resto do dia mentalmente. Entro no carro, descarrego os e-mails e faço uma lista de coisas para fazer fora de casa. Quando vou pagar o estacionamento, percebo que tenho uma nota de vinte euros e o cartão. Em moedas, tenho 44 cêntimos, como, aliás, tinha anunciado quando pedi à companhia do almoço que deixasse a gorjeta. Devo nada mais, nada menos, que oitenta cêntimos e não há trocos. Rebusco no carro, nos sítios onde às vezes esqueço moedas para os carrinhos do supermercado, mas nada. Pergunto a um senhor se troca uma nota de vinte em duas de dez, mas nada. Pergunto a outro. E a outro. E ainda a outro. E nada. Antes de seguir viagem, a pé, em busca dos 36 cêntimos em falta, pergunto ainda a mais uma pessoa. Um homem curvado, cansado, diria, com muitos papéis nas mãos e uma cor amarelada desconfortável. Que não tem. Agradeço. Sigo caminho quando me diz "Menina, quanto lhe falta?". E lá lhe digo. Mas que vou à Feira logo adiante e alguém me troca a nota. "Menina, por favor, deixe-me ajudá-la." Não é preciso, obrigada. Não me custa nada. É já ali. "Menina, deixe-me fazer isto, por favor. Se eu pedisse à menina, a menina faria?" E que sim. E então dá-me uma moeda. Cinquenta cêntimos. Estende-a na minha direcção. Que não, que não voltaremos a encontrar-nos, que muito obrigada, mas vou ali adiante. E o derradeiro "Menina, tenho de ir fazer umas análises, tenho de ir depressa. Não me peça que me demore mais. Por favor, aceite." E aceitei. E agradeci. Vou às flores. Um vaso de lata azul turquesa com dálias amarelas e sardinheiras vermelhas e rosa para a varanda. Escolhi, escolhi. Paguei. Saía com molhadas de flores nas mãos quando a ouço, com dois vasos de petúnias, "Menina, são para si. Gosto de ver gente assim nova como a menina a comprar flores." E aceitei. E agradeci. Fui comprar fruta. Alperces, pêssegos, laranjas e cerejas. Tinha pago certinho quando me põe no saco um quarto de pão escuro. "É uma novidade. Leve, para ver se gosta. Já não a via há tanto tempo... Passe mais vezes." E aceitei. E agradeci. Não, não me deram mais nada. Mas quando entrei novamente no carro, perguntei-me se os dias assim são suficientemente normais para que não deva temer o que está por acontecer. E achei disparatada a ideia. Gosto do mimo dos meus e das gentilezas de todos. Sou uma pessoa feliz com isso. Mudei o cd, pus a tocar a Mercedes e segui o meu caminho. Já plantei as flores, já provei o pão e já pedi que as análises dos senhor estivessem bem. É isso. Gosto destes dias cheios de pormenores.
Nunca tive dias assim. Os meus são sempre demasiado impessoais. Não sei se ia gostar, mas gosto de os ver nos outros. E gosto de os ler...
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