quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A L.

O facebook tem destas coisas. Soube há pouco que a L. vai ser mãe e, embora não fale com ela há anos, senti vontade de lhe dar os parabéns e desejar felicidades. E dei. E desejei. A L. foi minha colega de escola desde a 1.ª classe até ao 9.º ano. Depois eu fui para letras e ela para ciências, mas andávamos na mesma escola. Viemos ambas para a faculdade, na mesma cidade, mas raramente nos encontrávamos. As vidas tinham seguido o seu rumo e cada uma tinha o seu grupo de amigos, enfim. Além disso, a amizade dourada pela inocência dos primeiros anos tinha saído beliscada pelos comentários menos bonitos porque tinha melhores notas que ela. Não percebia bem na altura, mas percebo agora. Não é lá muito fácil lidar com a frustração e a L. não tinha aprendido ainda. Eu já, que passei aqueles anos todos sem nunca poder fazer de princesa porque ela era mais loura que eu e tinha os olhos verdes. Nas peças da escola, passava a vida a declamar poemas e a fazer de ceifeira enquanto ela aparecia embrulhada em tecidos brilhantes e de cores garridas e, uma ou outra vez, de saltos altos e coroa na cabeça. Depois, por alturas da 3.ª classe, também nos desentendemos porque gostávamos as duas do Francisco mas ele decidiu namorar com ela, fiquei a saber mais tarde, porque ela tinha acedido a levantar a saia para ele lhe ver as cuecas. Não achei aquilo simpático da parte dela. Estava a jogar com umas armas um bocado estranhas para mim, que já usava óculos e ainda usava duas tranças, além de continuar a fazer colecção de folhas de cheiro e não gostar nada de Barbies mas adorar Barriguitas e Nenucos. Quando veio a adolescência, a coisa não melhorou especialmente e tive alguma dificuldade em perdoar-lhe ter chegado à escola no dia a seguir ao meu irmão nascer e ela já ter dado a notícia a toda a gente. Mas continuava a gostar dela e, ingenuamente, a querer imitá-la em muitas coisas, sobretudo no desembaraço com que parecia agarrar todas as novidades e perigos da vida. Fui uma adolescente tótó em muitas circunstâncias e sou uma adulta com incapacidades crónicas, mas não acho que seja má moça e hoje, quando lhe dei os parabéns e lhe desejei felicidades, fi-lo de todo o coração. A L. desistiu do curso em que tinha entrado, com apenas uma cadeira feita. Encontrei-a pouco tempo depois, quando me preparava para erasmus, e tentei demovê-la dessa ideia parva de ir para casa seguir uma vida de doméstica aos 21 anos, só porque estava apaixonada e queria casar e o futuro marido achava que os cursos superiores são coisa de betinhos que não sabem o que custa a vida. E que mulher que é mulher quer-se em casa, arranjada e cheirosa, de mesa posta, à espera do seu homem. A L. ouviu-me com pouca atenção e disse "Também... iria para o desemprego e iria, não vale a pena matar-me. Além disso, já gozei muito isto tudo. Sabes, até já fui no carro." E foi neste dia que eu percebi que nunca mais poderia conversar com ela sobre coisas sérias, que todos os nossos encontros se resumiriam a comentários sobre o tempo ou um programa de variedades. A L. não é má rapariga, a sério. Fez a escolha dela. Faz a vida que viu a mãe fazer e que viu a avó fazer e assim por diante. Nunca de cá saiu, excepto para ir ao México de lua de mel. Via-a ler na missa e fá-lo com fraca entoação, o que mostra que lê pouco. Segue os artistas populares todos e nunca está cansada para ir a um arraial. Vai ao ginásio, tem unhas de gel e é organizadora oficial do deprimente Dia da Mulher lá da terra. Casou com um penteado cheio de canudos e consome novelas como quem bebe água. Não me parece infeliz, de todo. Apenas fez outras escolhas. Continua, tudo isto volvido, a dizer que não me vê há muito porque agora devo ter a mania, mas a deixar-me declarações de amizade infinita no mural, com cestos de flores que ora acendem ora apagam e aplicações para umas coisas de jogos que nunca aceitei e nem sei para que servem. Não a julgo e, repito, estou feliz por ela, mas faz-me alguma confusão pensar como duas pessoas um dia de sonhos tão próximos se distanciaram tanto no que desejaram da vida. Mas vai ser mãe e... só por isso, devo confessar,  hoje pergunto-me se não escolheu melhor.

10 comentários:

  1. Só pelo que escreveste e como o escreveste, vê-se que não escolheste mal. A parte do ser mãe a seu tempo chegará (o tempo certo).

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  2. Não percebi;-) Não foste mãe porque não calhou ( ainda...).


    Eu conheço arraialeiras, de cabelo ruivo, solteironas.

    A assunção crista têm 3 filhos.....

    erva doce

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  3. Erva doce,
    não é fácil perceber um texto em que só se dão pistas. Claro que conheces arraialeiras de muitos modos e feitios. Aliás, eu sou uma grandessíssima arraialeira, já aqui o disse várias vezes. E claro que a Conceição Cristas tem 3 filhos e o Roberto Carneiro não sei quantos e a Manuela Ferreira Leite mais não sei quantos e por aí adiante. O texto não é um atestado da minha incompetência ou o retrato de uma frustrada. Mas tem um quê de interrogação que mo fez escrever e, hoje, voltar a ler. Só para, até eu, ficar com tudo muito arrumadinho na minha cabeça.
    E claro que ainda é possível vir a ser mãe. Tenho 30 anos acabados de fazer, bolas ;)
    Beijinhos*

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  4. Tu não és frustada, não tens motivos para isso....

    Eu tenho uma filha,sou mãe solteira, mas isso não interresa nada. ;-)

    Faço trinta e seis anos daqui a um mês ( regista para mandares prenda), e aprendi que as pessoas fazem um filme cor de rosa de ser mãe e ter marido , e não é bem assim.
    Que as carreiras são incompativeis com os filhos, mentira pura mentira.



    Eu gosto de ser mãe, gostava de ter tido mais filhos, e se tivesse trinta anos e o cabelo aos caracois ninguêm me segurava.

    erva doce

    P.S- por favor, aconteça o que acontecer, não cases com os cabelos aos canudos, promete.

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  5. Mesmo pessoas que fazem as mesmas escolhas acabam sempre por ter vidas diferentes. A vida é uma grande caixinha de surpresas.

    Nada é linear e acho que essa é a principal conclusão a que chegas com este texto (tão bem escrito, como sempre!). A vida não é em preto e branco, as coisas não são todas óbvias nem previsíveis.

    Continua a trilhar o teu caminho, que esse tem uma característica realmente única e especial: é só TEU e mais ninguém o pode percorrer. *

    A erva doce é mesmo doce, não é?

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  6. Erva doce,
    está prometido :) Mas nem precisavas de pedir, não iria fazê-lo :)

    Raquel,
    a erva doce é um doce, tu és um doce, os meus seguidores são os melhores do mundo, só conheci pelo blog gente que vale a pena, tenho uns amigos do melhor que há, uma família adorada, um tema de doutoramento de que gosto muito, saúde, paz de espírito, uma casa com chão de madeira e corações pendurados nas portas, tulipas a nascerem-me na varanda, livros nas estantes, a profissão que escolhi, música para os meus ouvidos a soar aqui à beirinha de mim, vestidos e sapatos jolies e o perfume do chá acabado de fazer a morar cá em casa.

    Posso lá ser frustrada?!

    Beijinhos aos todos*

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  7. Querida R., a vida é assim mesmo, muitas vezes olho para trás e penso nas minhas amigas, as da altura, aquelas que todas juntas eram imbatíveis: eu segui o caminho do Ensino Superior como tu sabes, fiz outro curso, moro nesta bela cidade e até vou casar em Junho (ainda não caiu bem a ficha...), a A. também enveredou pelo ensino superior em Viseu, no ano seguinte conseguiu transferência para Coimbra, estudou enfermagem, no final decidiu que não era aquilo que queria fazer da vida e está a estudar psicologia, a D. veio para Coimbra estudar Farmácia e voltou a morar na aldeia e a trabalhar por lá perto numa farmácia de vila, tem a casa dela (arrendada é certo, mas tem o espaço dela) e parece-me feliz, a M. veio estudar Antropologia, terminou o curso mas não arranjou emprego, voltou à aldeia e trabalha num shopping na cidade mais próxima, a A.C. mudou-se para o Alentejo e não seguiu para o ensino superior, a A.L. não sei o que é feito dela mas também não continou a estudar e a C. era das que tinha mais dificuldades, não seguiu estudos mas tirou um curso de técnica de farmácia e trabalha lá na farmácia da terra. Como vês todas seguimos caminhos diferentes, ainda hoje me encontro com algumas delas e sabe muito bem ver que apesar dos caminhos continuamos aquelas pessoas que conhecíamos da escola, umas mais orientadas que outras mas sempre com o espírito vencedor :) E tu, se há coisa que tu sabes é dar o corpinho ao manifesto que ninguém tem uma casa e um doutoramento a caminho sem um grande esforço, e eu admiro-te por isso, porque me pareces especial!

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  8. Tu és uma mestre... Tu ensinas os outros. As pessoas crescidas citam aquilo que tu pensas. Tu motivas os teus alunos para fazerem mais e melhor. Tu és das melhores pessoas do Mundo. Tu fazes um cházinho tão bom e a tua sala é tão acolhedora. Tu tens o dom de tornar a vida dos teus amigos mais quentinha e colorida. Podes lá ser frustrada?!
    Além disso, já sabes que vais ter um casamento lindo e com flores (e sem canudos no cabelo)... E já tens quem queira fazer fatinhos para os teus bebés :)

    (De qualquer modo, a L. não foi como a F. - uma colega do ciclo - que encontrei há uns tempos, casada e com um filho:
    "Olha, também não percebo o que andas a fazer... tanto estudo, tanto estudo e pelos vistos nem te pagam. Devias era ganhar juízo, arranjares um namorado e pensares em casar e ter filhos...olha que já não estamos novas!)

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  9. És tão exagerada, valha-me o Criador!!!

    Beijinhos, sim, cachopa?!

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