terça-feira, 7 de abril de 2015

Da minha avó

Já várias vezes tinha pensado nisso de como o facto de o blog ser conhecido de algumas pessoas que me conhecem me coarcta a liberdade de escrever. Por estes dias, o pensamento voltou a rondar-me e mantive-me calada em busca do lugar onde ninguém me conhecesse e eu pudesse dizer tudo, escrever sobre tudo. A sensatez que vem com o tempo pôs-me os pontos nos is e mostrou-me que ninguém vive sem passado, que todos temos o nosso, e que eu não serei a única a ter coisas que me apetece gritar ao mundo mas que o bom senso manda recolher ao peito. Por isso, não vos escrevo sobre a Páscoa, nem sobre os sentimentos com que a vivi, nem sobre a maneira como tenho dormido, ou acordado, ou comido, nem sobre o esforço que tem sido manter-me de pé, cara alegre que o Mundo não tem culpa. Por isso, hoje escrevo para vos recordar de um tempo em que prometia pegar nas histórias da minha avó e transformá-las num legado para os Homens. É uma pena haver quem não a aproveite. É uma delícia, a minha avó. Por isso, hoje conto-vos a saga da D. Rosa em busca do falecido Manel da Fruta.


Chegou certo dia da semana passada, à casa humilde dos meus avós, a cachopa Noémia com a má notícia. A cachopa Noémia, com os seus oitenta e muitos, comunicava solene à amiga Rosa que o rebate do sino se dera minutos antes por ocasião do falecimento do Manel da Fruta. D. Rosa, muito expedita, abeirou-se do marido que o cansaço dos anos vai afastando, todos os dias, um bocadinho mais de nós, e ter-lhe-á dito "Morreu oprimo Manel da Fruta. Ficas aqui em casa um pouco, que eu cá, tem lá paciência, não posso passar sem ir dar os sentimentos à Maria Candongueira e encomendar ó menos um ramo." D. Rosa alça-se então na sua bicicleta eléctrica, o meio de transporte que mais usa desde que há um ano, ao marido com 94 anos, um AVC obrigou, finalmente, a deixar de conduzir. E pôs-se a caminho. Do Monte ao Porto não distam três quilómetros e D. Rosa assapa que é uma beleza, passando por cima de toda a folha. Conta-nos, olhos nos olhos para que ninguém a duvide, que ao dar a curva do Dr. indiano viu ao alto, mesmo ao indireito da casa do Manel, duas mulheres. E que se lhe enegreceu ainda mais o coração, enquanto sussurrava para si "Morreu mesmo. Já se lá junta gente!". Prosseguindo o trajecto, as duas mulheres que lhe fazem paragem acabam, porém, por começar a baralhar a história. Ambas vizinhas, ainda em camisa de dormir e robe por cima, perguntam a D. Rosa o que faz por ali. D. Rosa encara com uma e diz-lhe em espanto "Tu nem vais acreditar. Eu vinha aqui dar-te os sentimentos p'lo teu home, que foi agora a Noémia à minha casa dar-me a triste notícia de ter morrido o Manel da Fruta. E eu cá Manel da Fruta só conheço o teu. " O espanto que a situação causará no leitor há-de no entanto aumentar agora que lhe afianço que Maria Candongueira se abraçou à D. Rosa e lhe disse "Por hoje, ainda não! Olhe ali o meu homem a apanhar sol no jardim. Mas obrigadinha pelo respeito,  Ti Rosa. Ai que grande amizade você me mostrou hoje, vejam lá vocês bem. Muitos beijinhos." O mistério do Manel da Fruta permanecia e D. Rosa, compreenderá quem a conhece, não leva dúvidas para casa. Vinha a curvada anciã no caminho de volta e, um pouco mais adiante do alçado da capela, encontra o Ferro com o menino mai novo pela mão. Afrouxa a bicicleta e pergunta-lhe quem morreu, que o sino tocou não há muito. É o Ferro quem lhe diz, "Olhe, o primo. O Manel da Fruta." D. Rosa acaba a ripostar "Tem paciência, mas não foi. De ver se dava os sentimentos à Maria Candongueira venho eu e o Manel estava no jardim, todo luzidio, a apanhar sol." A tristeza do primo morto dá lugar a uma certa estupefacção, à mistura com desvelo pela importância de chegar a casa com notícias frescas. É porém outra vizinha, já mesmo ao sarrente do portão, que lhe diz que Manel da Fruta morrera. Era outro. De bem mais longe e que nem do tempo das feiras ela conhece. "Nem lá fui dar uma palavra à família. E olhem, nem um ramo pus ao defunto. Que é um grande respeito que uma pessoa dá, mas eu não os conhecia. Tenho-lhe rezado pela alma... lá isso tenho".

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